Dizem por aí que mulheres adoram cafajestes. Eu não sei se é verdade ou não porque não sou nem mulher nem cafajeste. Pelo menos não completamente, se é que me entendem. Acho que já fui (cafajeste, quem nunca foi alguma vez?), mas não vem ao caso. E também existe mulher cafajeste. Mas a questão aqui é outra, ou pelo contrário, a mesma; a que predomina no blog – letra de música. E letra de música em que o eu-lírico se assume cafajeste tem de dois tipos básicos: as mais explícitas e as muito sutis. Tomemos, por exemplo, Disritmia, do Martinho da Vila; é explicitamente uma manifestação poética em que o poeta é um cafajeste assumido. No refrão, ele diz “vem logo, vem curar teu nego / que chegou de porre lá da boemia”. Cara de pau! Mas é uma cara de pau necessária. Vejam que letra, que “recantada”:
Disritmia
Eu quero me esconder debaixo
Dessa sua saia pra fugir do mundo
Pretendo também me embrenhar
No emaranhado desses seus cabelos
Preciso transfundir seu sangue
Pro meu coração que é tão vagabundo
Me deixe te trazer um dengo
Pra num cafuné fazer os meus apelos
Eu quero ser exorcizado
Pela água benta desse olhar infindo
Que bom é ser fotografado
Mas pelas retinas desses olhos lindos
Me deixe hipnotizado
Pra acabar de vez com essa disritmia
Vem logo, vem curar seu nego
Que chegou de porre lá da boemia
E a mulher pensa “é cafajeste, mas é poeta”! Pior são as que cedem aos encantos dos cafajestes (quais encantos?) que nem poetas são e nem têm nada de especial para oferecer. Em Disritmia o poeta chega com aquele palavreado fantástico que, se não estou errado, fala ao universo feminino, e fala no ouvidinho que se escuta pelo coração sensível, e ele passa de sem-vergonha e canalha a sujeito frágil e sensível (“quero me esconder debaixo / dessa sua saia pra fugir do mundo”). Tadinho, tão frágil e tão sensível que foge da tarefa de enfrentar a sua natureza cafajeste. E a mulher compreende. E perdoa.
Tem duas canções, além dessa acima, em que o atestado de eu-lírico cafa é dado mais sutilmente, mas de modo igualmente poético ou mais. Até pode haver outras, mas eu vou nessas agora. O eu-lírico não precisa dizer “voltei de porre da boemia” tão diretamente. E o que será que rolou nesse porre? Na canção O Portão, do Roberto Carlos, fala um cafajeste que se ausentou por bastante tempo. Foi, talvez, viver a promessa de um outro amor:
O Portão
Eu cheguei em frente ao portão
Meu cachorro me sorriu latindo
Minhas malas coloquei no chão
Eu voltei
Tudo estava igual como era antes
Quase nada se modificou
Acho que só eu mesmo mudei
E voltei
Eu voltei agora pra ficar
Porque aqui, aqui é meu lugar
Eu voltei pras coisas que eu deixei
Eu voltei
Fui abrindo a porta devagar
Mas deixei a luz entrar primeiro
Todo meu passado iluminei
E entrei
Meu retrato ainda na parede
Meio amarelado pelo tempo
Como a perguntar por onde andei
E eu falei
Onde andei não deu para ficar
Porque aqui, aqui é meu lugar
Eu voltei pras coisas que eu deixei
Eu voltei
Sem saber depois de tanto tempo
Se havia alguém a minha espera
Passos indecisos caminhei
E parei
Quando vi que dois braços abertos
Me abraçaram como antigamente
Tanto quis dizer e não falei
E chorei
Claro que pode aparecer alguém para dizer que a biografia do Roberto Carlos não necessariamente justifica essa interpretação, e que no caso dele essa música pode até ter a ver com a relação entre ele e os pais, no capítulo do retorno à casa dos pais. Mas eu não estou falando dos autores e muito menos das vidas deles. Estou falando, isso sim, do que pode ser interpretado a partir das letras, e para tanto eu me refiro ao poeta ou ao eu-lírico, jamais ao autor (e poeta nem sempre quer dizer a mesma coisa que o autor).
Então, neste sentido, a mesma coisa que vale para Disritmia vale para esta última; só que em O Portão o poeta passou muito mais tempo longe, o suficiente para o retrato na parede amarelar, e não foi somente uma noitada. Ah, obviamente, e mesmo que todo mundo tenha percebido eu ainda posso mencionar; em Disritmia o poeta dirige-se à mulher; em O Portão o poeta conta a história do seu retorno. Mas tudo bem, eu admito que há uma diferença maior ainda: na canção do Roberto nos fica a dúvida se é uma letra de cafajeste ou não.
A melhor evidência é “dois braços abertos”, que sugere que sejam de uma pessoa somente, e de uma mulher, infere-se. A menos que esteja subentendido que “dois” sejam dois pares de braços, aumentando o número de braços para quatro, e há quem argumente que não seria preciso dizer “dois braços” para dizer um par de braços porque isso é o que se espera numa pessoa nascida sem problemas anatômicos, e que o “dois” tenha um valor significativo combinado com um termo que está elíptico (os dois pares), para justificar a interpretação de retorno à casa dos pais. Mas, eu hein... Que discussão sem futuro. É letra de canalha e pronto, e que resolveu voltar para a mulher depois de uma longa aventura fora. Inclusive, no verso "meu retrato ainda na parede", há uma pista a favor do meu argumento. Não se imagina que os pais tirariam das paredes ou das estantes da casa os retratos de um filho desgarrado; uma mulher magoada pelo homem que a abandonou, sim. Tudo isso está sendo dito pelo "ainda".
A outra canção de que quero falar é a mais discreta das três. Curiosamente, ela tem elementos das duas músicas acima. Outra curiosidade é que há quem não aceitaria de forma alguma o argumento de que é uma letra de cafajeste porque o autor, Lô Borges, é um pacato bom menino mineiro. Novamente há que se excluir o autor, pois não falamos dele. Estou falando daquela belíssima canção, Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor, que tem um progressão (ou regressão) harmônica cheia de cromatismos nos bordões. Tá, é uma progressão num cromatismo descendente, e é isso que provoca um efeito musical de melancolia nessa canção. Mas introduzo o argumento da letra de cafajeste fazendo relação com trechos das anteriores. Quando se diz, nos primeiros versos de Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor, “cheguei a tempo de te ver acordar / eu vim correndo à frente do sol”, isso significa passar pelo menos a noite fora, como no refrão de Disritmia, apenas dito um pouco mais metaforicamente.
Há uma coincidência também entre Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor e O Portão, em um trecho importantíssimo das letras, em que o poeta-cafa, antes de entrar, para e pensa no que vai dizer, e se vale a pena: Em O Portão se diz: “fui abrindo a porta devagar / mas deixei a luz entrar primeiro / todo o meu passado iluminei / e entrei”. E iluminar o passado é conferir-lhe brilho; isto é, se o passado se ilumina nesse instante de derradeira hesitação é porque vale mesmo a pena voltar. Em Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor, diz o poeta: “abri a porta e antes de entrar / revi a vida inteira / pensei em tudo que é possível falar / que sirva apenas para nós dois”. É aí, nesse “que sirva apenas para nós dois” que ele se entrega ao meu argumento. Porque o que “serve apenas” é exceção, nunca regra. E se a regra é a fidelidade monogâmica e um jamais deixar o outro; então o poeta cafajeste vai argumentar que, especificamente, há de se considerar uma exceção para ele.
Qual a exceção? Tcharã! Há coisas que a simples moral não compreende, e por isso ele diz “pensar além do bem do mal”, porque um marinheiro (será?), que eventualmente pode ceder a “desejos de cais”, pelos portos por que passa, pode argumentar que essa dura realidade ("o mundo lá sempre a rodar / em cima dele tudo vale") não precisa afetar o sagrado universo do casamento:
Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor
Cheguei a tempo de te ver acordar
Eu vim correndo à frente do sol
Abri a porta e antes de entrar
Revi a vida inteira
Pensei em tudo que é possível falar
Que sirva apenas para nós dois
Sinais de bem, desejos de cais
Pequenos fragmentos de luz
Falar da cor dos temporais,
de céu azul das flores de abril
Pensar além do bem do mal
Lembrar de coisas que ninguém viu
O mundo lá sempre a rodar
Em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor
Estrada de fazer o sonho acontecer
Pensei no tempo, e era tempo demais
Você olhou sorrindo pra mim
Me acenou um beijo de paz
Virou minha cabeça
Eu simplesmente não consigo parar
La fora o dia já clareou
Mas se você quiser transformar
O Ribeirão em braço de mar
Você vai ter que encontrar
Aonde nasce a fonte do ser
E perceber meu coração
Bater mais forte só por você
O mundo lá sempre a rodar
Em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor
Estrada de fazer o sonho acontecer
Depois que o poeta argumenta tudo aquilo, portanto, a amada acena um beijo de paz. Não quer briga, talvez sinta saudades ou tenha outros desejos. E assim a situação vira completamente a favor do cafa. Ele, que chega pouco antes do sol nascer - cheio de explicações - é que acaba por ter o poder de satisfazê-la. Talvez ela até queira que ele dê satisfações depois. E todo mundo sabe, satisfazer e dar satisfações são coisas completamente diferentes. Mas agora, com algum gesto, um aceno, ela “vira a cabeça” dele porque quer dele primeiro a satisfação mais primitiva. Que trunfo na mão!
Trunfo porque dependendo que ele disser ou fizer agora, ou põe tudo a perder ou ganha o céu. E a partir daquela sentença condicional vagamente suspeita de ser uma metáfora sensual (“se você quiser transformar / o Ribeirão em braço de mar”) ele faz a “recantada”, dizendo as palavras mais doces e românticas que a mulher já ouviu: “você vai ter que encontrar / aonde nasce a fonte do ser / e perceber meu coração / bater mais forte só por você”. E tudo está salvo...
Porque um homem, digamos, “normal”, conquista a mulher uma vez e quer tê-la como sua pela vida inteira, e não acha que corre o risco de perdê-la porque ele é, em tese, o melhor “produto” para um relacionamento – o homem certinho, direito, fiel. O cafajeste, por outro lado, sempre na corda bamba, precisa reconquistar a mulher constantemente, pois mesmo que ela não saiba de nada, as culpas o atormentam. E talvez seja por isso que as mulheres, caso isso se aplique a alguém de verdade, acabam preferindo os cafajestes. É que elas adoram as “recantadas”, e quanto mais poéticas, melhor.
Até a próxima!
Luis Felipe
Links para as canções no Youtube:
Disritmia:
http://www.youtube.com/watch?v=MF4UsW4--sM&feature=fvst
O Portão:
http://www.youtube.com/watch?v=zbOuI5hv2yo
Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor:
http://www.youtube.com/watch?v=1BGxHfV7TWw&feature=player_embedded
P.S. O moço do retrato, para quem não sabe, é o ator Clark Gable, do clássico norte-americano O Tempo e o Vento. O seu bigode ficou conhecido como “bigodinho de cafajeste”, por alguma razão.
2 comentários:
Agora que tu já escreveu sobre os cafas, visitou meu blog e curtiu o Gainsbourg, acho que podia escrever sobre os comilões, o que tu acha? Gainsbourg, Chico, Jaegger e quem mais for pegador. Mas tudo com muita elegância, que afinal esse blog é de respeito!
Esse texto sobre os cafajestes tá ótimo, irmão... Só não entendi, quendo tu pediu pra eu ler em primeira mão, porquê tu disse que eu ia me identificar...
Bem, deixemos isso para outro momento.
Abraço, xirú!
Comilões, tu quer dizer, assim, tipo o Ed Motta? ;D
Abraços!
Postar um comentário