Note in English: scroll down up to the bottom of the page.

sábado, 27 de novembro de 2010

A lenda do eterno retorno revisitada



Lulu Santos acerta 98% das vezes. E os 2% restantes a gente simplesmente ignora, ou não conhece mesmo, o que é quase a mesma coisa. Ou não, nem muito antes pelo contrário. Mas sem tergiversar muito, vamos ao assunto.

Vale de Lágrimas é uma canção muito esperta, e que pode pegar o seu ouvinte despreparado. Despreparado para as sacanagens que Lulu Santos faz com essa canção. Em Vale de Lágrimas nota-se que há uma discussão em cima de grandes clichês da música em geral. Para começar, a lenda do eterno retorno, ou melhor dizendo, exatamente o verso “volta para mim”, que ele mesmo sempre volta. Há muitas canções com esse verso. Há canções com esse verso servindo como título. Há canções dos mais diversos estilos musicais que em algum ponto vão dizer “volta para mim”.

Como então um compositor faz uma canção em que quer dizer “volta para mim” sem que isso seja simplesmente um clichê, como se ele não tivesse pelo menos uma vontadezinha de inovar? Eu sugeriria, como uma potencial resposta, que o poeta tem que, primeiramente, saber que está no terreno da coisa repetida exaustivamente. Claro que o clichê, por si só, pode funcionar. Tanto que vira clichê. Mas é mais legal, isso ninguém discute, quando existe a consciência disso, faz-se alguma referência ao fato de se estar lançando mão de um clichezão, e assim, sair da mesmice antipoética.

A perspicácia de Lulu sobre esse clichê, em Vale de Lágrimas, é de uma sutileza só. Diz a letra “faça-me um favor / volta para mim / é o que sei dizer / nada mais / se não me repetir”. Ora, preciso ser mais explícito? “Repetir-se”, ali, além do que significa dentro da própria lógica da letra, também significa repetir a tradição poética das canções que dizem “volta para mim”, que é o próprio efeito clichê. Além desse refrão que é excepcionalmente bom, a letra toda se constrói em cima de uma metáfora, em que o ser romântico apaixonado e abandonado só se vê diante de duas alternativas: ou jogar-se no mar para se afogar ou atravessar um deserto. É bem legal quando ocorrem as aliterações na sequência dos adjetivos “molambo”, “sonâmbulo”, “insone” e “insano”. E para falar da música propriamente dita, mais uma sacanagem, no bom sentido. É uma música alegre, construída em tom maior, e não uma música melancólica, triste, etc, como seria normal para uma música em que se diz “volta para mim”. Quer dizer, são diversos níveis em que o compositor pode retomar os clichês para sair deles.

Mas para sair do meu próprio clichê que é sempre repetido e insistentemente falado no blog (as letras), vou falar de outra coisa. Vou falar um pouco do clipe. Genial! Fica de parabéns o cérebro que bolou esse clipe, que eu não sei quem é. O clipe conta uma história, cuja sinopse é bem simples: o músico para no canteiro no meio de um viaduto, guitarra na mão e amplificador do lado, no meio da noite, em frente ao prédio daquela que se “desapegou” dele. E começa a tocar. O visual do clipe é meio que a fotografia que usaram no Sin City, o filme; preto e branco e tal, até o próprio Fuca da polícia evoca algo do filme Sin City, inspirado e baseado no quadrinho homônimo do Frank Miller. Sei lá, posso estar falando besteira. Mas vai ser só mais uma no meio de tantas. Posso re-narrar a história que conta o clipe, chamando atenção para uns detalhes que acho fundamentais.

Voltando à história, antes mesmo do cantor começar a cantar, uma moça com uma bolsa grande sai do prédio. Aos poucos, os vizinhos do apartamento começam a acordar. A homenageada pela serenata é uma das últimas a acordar. Um tiozinho mal humorado (no lugar dele, também estaríamos) acorda e chama a polícia. Um dos moradores acorda, sente o espaço restante da cama vazio e vai olhar o guarda-roupa, que também está vazio.

E daí? O que tem a ver o cara do guarda-roupa com a história? O seguinte: a história na verdade são esses dois micro-romances paralelos, do serenatista lá em baixo e da desapegada lá em cima, e o do cara do guarda-roupa. Mas o que diz o guarda-roupa vazio, para ser importante para a história contada pelo clipe? Diz justamente que nem sempre foi vazio, diz que ali a sua companheira guardava suas roupas. E que ele está, sim, sozinho. Porque o guarda-roupa está vazio.

Voltando à serenata, tem um efeito engraçado a moça jogando no cantor uns LPs. Seriam os discos dele? Dele que comprou os discos na loja ou dele que fez as músicas dos discos? Depois ela começa a jogar as cartas de amor e as fotografias. Ele não vai embora. Mas algo está para mudar na atitude dela. Ela pega uma carta ou fotografia que a faz parar os lançamentos da sacada. Alguma coisa toca ela, senão só no objeto que tem na mão, talvez na situação toda. Ela toda revoltada na sacada e ele pagando um micão lá em baixo, só por causa dela. Ela finalmente é tomada por compaixão e vai pelo menos ouvi-lo. Quer dizer, ela já estava ouvindo, todos no prédio estavam. Ela vai ouvi-lo no outro sentido.

Ela desce do jeito que está vestida para dormir, de calcinha e blusa (e nem precisava mais!!!), além de um casaquinho comprido para se proteger do frio da madrugada. Mas o vizinho que é o tiozinho já chamou a polícia, e a polícia está vindo. A polícia recolhe o homem que está perturbando a ordem e o horário de silêncio. A bela assiste, do meio da rua, seu pretendente ser levado na viatura do Sin City. E no apartamento do cara que foi ver o guarda-roupa, alguém retornou. Era a moça que tinha saído bem no começo do clipe, a companheira do cara do guarda-roupa (com as roupas na bolsa grande). Ela não chegou na esquina e se sensibilizou com a serenata que era para outra. É a metáfora da construção poética, inclusive em letras de música, que não necessariamente “funciona”, num certo sentido, para quem a faz nem para a “musa”, mas mais para quem as escuta.


Vale de Lágrimas

Deixa eu lhe dizer
O que eu passei
Desde que você
Se desapegou de mim

Eu zanzei pelas ruas,
Um molambo
Sonâmbulo,
insone e insano
Queria me atirar no mar

Só para me afogar
Que ainda é melhor
Que ser um devedor
Nas contas do amor

Preferia um deserto atravessar
Sob o sol e as noites sem luar
Do que dar meu braço a torcer

Que você não está
Que você não vem
Faça-me um favor
Volta para mim

É o que sei dizer
Nada mais
Se não me repetir

Que zanzei pelas ruas
Um molambo, sonâmbulo
Insone e insano
Queria me atirar no mar

Só pra me afogar
Que ainda é melhor
Que ser um desertor
Dos campos do amor

Preferia um deserto atravessar
Sob o sol e as noites sem luar
Do que dar meu braço a torcer

Até a próxima!

Luis Felipe

sábado, 20 de novembro de 2010

O que é o samba?

Em Samba A Dois (Marcelo Camello, Los Hermanos), canção da qual já falei aqui brevemente, propõe-se a pergunta “quem se atreve a me dizer do que é feito samba?” A pergunta é pertinente, sim, mas curiosamente a ordem pergunta-resposta nesse grande diálogo que é a tradição do samba não é necessariamente linear nem cronológica. O tempo não existe só cronologicamente e os sentidos estão aí no mundo, tanto que pode existir uma resposta na realidade para uma pergunta que ainda não foi feita. Responder a uma pergunta de tal natureza é apenas tornar evidente uma resposta que talvez já “existisse” antes mesmo de ser verbalizada. E quem responde à questão de Samba A Dois é, na verdade, uma tradição longa de sambistas, a maioria antes da própria pergunta ter sido feita.

Claro, há de se fazer referência ao fato de que a banda Los Hermanos não é um conjunto de samba, mas uma banda de rock, digamos assim, e que reuniu diferentes influências e estilos compondo, bem dizendo, canções híbridas. Nesse sentido, a pergunta “quem se atreve a me me dizer do que é feito o samba?” pode ser entendida como um desafio, tipo “estarei ousando dentro do samba, que não é nem o meu estilo, então quero ver quem é capaz de me dizer que não é samba”. Mas o que estou propondo é deixar essa interpretação de lado, pelo menos por enquanto, e inscrever a pergunta feita em Samba A Dois na tradição que define o samba, justamente porque ela dialoga com as respostas que existem em letras de sambas tradicionais. Tanto a ideia da pergunta como desafio quando a ideia da pergunta dialogando com a tradição coexistem, mas nos ocuparemos primeiro com a primeira possibilidade interpretativa.

Posso dizer, com pouca chance de estar errando muito, que há uma tradição dentro de letras de samba cujo motivo é, justamente, definir o próprio samba. Nisso o samba pode se configurar até como uma prática discursiva, aproximando-se portanto das ciências humanas que precisam definir-se pois não têm um objeto “concreto”, “real” e “material” observável fora do discurso. Já se diz em Nó Na Madeira, de João Nogueira (que é uma canção autorretrato altamente metafórica, interessantíssima de se analisar), que “o samba é ciência”. Claro, isto evoca uma discussão eterna entre as “obviamente” diferentes em tudo arte e ciência, e ninguém parece reivindicar muito seriamente que “samba é ciência”, talvez, a não ser metaforicamente. Mas se tomarmos o conjunto de letras de samba, enquanto prática discursiva que, inclusive, cria ela própria e uma cultura do samba, isto é, cujos sentidos não são somente metáforas, mas também sentidos do real produzidos, então como é possível se estabelecer um limite, senão relativo, entre ciência e arte?

Mas vamos deixar de lado a minha pergunta, menos interessante, e voltar à pergunta em Samba A Dois. Existe essa tradição de se definir o samba na letra de samba. Meus conhecimentos limitados não me permitem reconhecer todas as letras existentes desde os primórdios do nada e do nunca, mas posso apontar algumas canções que conheço. Em Feitio De Oração, por exemplo, de Noel Rosa e Vadico, instaura-se o sentido de o samba ser o que se exprime da dor sentimental, da dor de amor, como arte poética ainda herdeira do Romantismo:

“batuque é um privilégio / ninguém aprende samba no colégio / sambar é chorar de alegria / é sorrir de nostalgia / dentro da melodia (...) O samba na realidade / não vem lá do morro / nem vem da cidade / quem suportar uma paixão / verá que o samba então / nasce do coração”.

Ainda nessa mesma canção, cujo título - Feitio De Oração - diz que o poeta canta o samba como se dissesse uma prece, tal sentido é de certa forma retomado em Samba Da Benção, de Vinícius de Moraes e Baden Powell: “é preciso um bocado de tristeza / se não não se faz um samba não” (...) fazer samba não é contar piada / quem faz samba assim não é de nada / o bom samba é uma forma de oração”

E a “forma de oração" do Samba Da Benção faz referência quase direta à ideia de prece proposta em Feitio de Oração, acima citada, mas mais diretamente ao trecho “... cantar com satisfação e harmonia / esta triste melodia / que é meu samba / em feitio de oração”. Essa ideia de ligação com o transcendente também percorre um bom punhado de sambas, como por exemplo “samba é tudo o que Deus abençoou” (Samba É Tudo, Celso Fonseca e Ronaldo Bastos); “o samba (...) é o grande poder transformador” (Desde Que O Samba É Samba, Caetano e Gil). E mais ou menos dentro dessa ideia de ligação com o transcendente, com o divino até, a composição Poder Da Criação, de João Nogueira, “teoriza” sobre a inspiração, sendo esta advinda de uma “força maior”:

“não, ninguém faz samba só porque prefere (...) não precisa se estar feliz nem aflito / nem se refugiar em lugar mais bonito / em busca da inspiração” (...) faz pensar... que existe uma força maior que nos guia (...) e o poeta se deixa levar por essa magia / e o verso vem vindo e vem vindo uma melodia / e o povo começa a cantar”.

Existem sambas que vão se autodefinir pela questão da conduta do sambista frente à "sociedade do espetáculo", como em Samba É Tudo, acima citada, mas mais especificamente no trecho “ser sambista é muito mais / do que ser notícia nos jornais (...) o bom samba é o que traz / na cadência a doce pulsação da vida / pra fazer um samba a mais / é preciso mais que pretensão”. Ou seja, se me é dado o direito de explicar, o bom sambista não vai buscar pela fama, mas pela essência, pela poesia intrínseca a tal “doce pulsação da vida”. Interessante que pulsação tem, pelo menos aqui, dois sentidos, o de pulso ao qual o ritmo segue, e a pulsação dos batimentos cardíacos, que é para algumas espécies animais sinônimo de vida (se tem pulsação é porque está vivo).

A forma como se toca o samba, ou melhor dizendo, os instrumentos escolhidos para se tocar um samba, também pode ser uma forma de definição. Nesse sentido é estericamente hilariante o diálogo que se estabelece entre Samba A Dois, lá do início do texto, e Argumento, de Paulinho da Viola. Samba A Dois é praticamente um samba tradicional, musicalmente falando. Mas a banda que a compôs toca a canção com guitarra distorcida, baixo e bateria, entre outros. Em Argumento o sambista diz “tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim (...) olha que a rapaziada está sentindo falta / de um cavaco, de um pandeiro e de um tamborim”. A ideia de "desafio" sugerida no segundo parágrafo e retomada somente agora, nesse diálogo entre as músicas que eu estou propondo, diz respeito mais a “quem se atreve a me dizer” como argumento, pois ao mesmo tempo que a pergunta questiona, também sugere que o desafiado, na verdade, não se atreve a dizer do que é feito o samba, porque autoridade não é. Mas cuidado: nada disso do que estou dizendo existe fora desse texto, porque a canção de Paulinho da Viola é bem anterior a do Los Hermanos, e uma não se refere a outra, pelo menos não intencionalmente, supomos. E Paulinho da Viola seguramente é autoridade no samba. Contudo, relacioná-las pela diálogo estabelecido na tradição produz tranquilamente este efeito de pergunta e resposta que se complementam.

Existe também a ideia de que o samba é uma missão a ser continuada como em Não Deixe O Samba Morrer (Edson Conceição e Aloísio da Costa), em que se diz - “antes de me despedir / deixo ao sambista mais novo / o meu pedido final / não deixe o samba morrer / não deixe o samba acabar / o morro foi feito de samba / de samba pra gente sambar (...) o meu anel de bamba / entrego a quem mereça usar”. E este verso “o morro foi feito de samba”, que coloca o que seria um adjunto adverbial de lugar (o samba foi feito no morro) no lugar de sujeito da passiva, ao propor essa inversão, está naturalmente dizendo alguma coisa. E dizer que o morro foi feito de samba significa dizer que a cultura do morro se construiu pelo samba, pelos discursos que o samba veicula sobretudo nas letras. Ou seja, é uma noção de cultura já bem avançada, diferente daquela em que o lugar é determinante da cultura e seus efeitos, mas pelo contrário, a cultura do morro são os próprios discursos do e sobre o morro, e o samba é o registro discursivo, desde que musical, da cultura do samba de morro.

Se quisermos retomar a pergunta inicial para, talvez, propor uma resposta, eu diria que uma parte das letras de samba é feita, justamente, desse diálogo com a tradição: o samba que se define a si mesmo, assim como o samba que se pergunta quem é - e se autoafirma. Também disto é feito o samba. E tenho dito!

Para brindar este texto deixo o link de vídeo do Youtube com uma gravação histórica dos Novos Baianos, cantando o samba-exaltação Brasil Pandeiro, de Assis Valente. Deixo também uma confissão – eu me entusiasmei escrevendo esse texto e depois me emocionei ouvindo esta música.


http://www.youtube.com/watch?v=ojeJ-DCMtls


Até a próxima!

Luis Felipe


Crédito da imagem: caricatura de Noel Rosa por Cristiano Teles: http://searrependimentomatasse.blogspot.com/search/label/caricas

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Problema de Gênero II

(Da série Problema de Gênero)

Dente De Ouro é uma ladainha de capoeira, e tem várias versões que são atribuídas a diferentes “autores”, que na verdade são cantadores e continuadores de uma tradição oral que preserva a memória de ladainhas vinda desde os escravos. Isto é, a história das ladainhas se confunde com a história da capoeira, e tudo isso teve origem na escravidão. O site www.capoeira-infos.org atribui a autoria a diferentes “autores” ou cantadores como Mestre Pastinha numa das Fontes, e a Mestre Canjiquinha e Mestre Valdemar em outra. Curiosamente, numa das fontes, diz-se que a ladainha pode ter sido inspirada na canção de João de Oliveira, cantada por Francisco Alves, de 1929, chamada de Quem Eu Deixar Não Quero Mais, que tem uma estrofe que é bem assim: "tens um dente de ouro / fui eu que mandei botar / vou te rogar uma praga / para esse dente quebrar".

A versão que parece ser a mais seguida pelas rodas de capoeira, e que por isso se torna a mais “autêntica”, é aquela atribuída a Mestre João Pequeno de Pastinha:

Dente De Ouro

Ela tem dente de ouro
Ela tem dente de ouro
Ela tem dente de ouro

Ora meu Deus
Fui eu que mandei botar

Vou rogar nela uma praga
Para esse dente se quebrar
Ela de mim não se lembra

Ora meu Deus
Nem dela vou me lembrar

Menina, diga seu nome
Que eu também já digo o seu
Eu me chamo Chita Fina
daquele vestido seu

Casa de palha e palhoça
Se eu fosse o fogo eu queimava
Toda mulher ciumenta
Se eu fosse a morte eu matava


Camaradinha, viva meu Deus....


Esta versão varia pouco da versão atribuída a Mestre Canjiquinha e Mestre Waldemar:


Ela tem dente de ouro
Ela tem dente de ouro
Foi eu quem mandei botar
Eu vou rogar uma praga
Pro dente se quebrá

Dela eu não me lembro
Ó meu Deus
E não quero me lembrar
Das horas amargurada, oi iá iá
Com ela eu conversava

Na beira de uma praia
Em um bonito luar
Ela sempre me jurando
Ó meu Deus
Que a outro não amava

Vim da Ilha de Maré
Jogar em Santa Rita
Duas coisas neste mundo
Que meu coração palpita
É um berimbau roseiro
E uma moça bonita

Camará


A banda brasileira de blues Blues Etílicos gravou a ladainha, lá pelos idos da década de 1990, realizando um feito realmente impressionante: mesmo sendo um banda de blues no sentido tradicional, mas que experimentava com as cores da brasilidade (com várias músicas cantadas em português, o que poucos já fizeram, como Celso Blues Boy e André Christovam) eles radicalizaram na mistura de gêneros. E gravaram uma ladainha de capoeira na tentativa de fazer um blues brasileiro mesmo, isto é, um tema brasileiro em sentido amplo, a estrutura “melódica” da ladainha, com não muito mais que as notas na distância de um tom entre uma linha “melódica”, desde que monotônica, e outra.

A idéia da Dente De Ouro foi, sem querer poupar elogios aos meninos do Blues Etílicos, genial por diversos motivos. Se pensarmos, por exemplo, que o blues dos estados sulistas americanos, na sua simplicidade pentatônica, derivava dos chants dos escravos das plantações de algodão do período colonial escravagista, e que as ladainhas da capoeira seriam, mais ou menos, o mesmo tipo de manifestação dos escravos daqui, então juntar a ladainha com o blues não era simplesmente fazer mistura de gêneros, mas reunir irmãos separados há cerca de 500 anos em diferentes navios que traficavam pessoas da África para servir como escravos nas Américas. O que eles juntaram e que foi separado no decorrer desse meio milênio, como ocorre com as manifestações artísticas, foi se modificando com o tempo.

O blues se sofisticou e se aprimorou, dos chants nasceram os negro spirituals, o jazz, o próprio blues, e uma penca de ramificações de tudo isso. Dos ritmos africanos, no que estes se misturaram com os ritmos portugueses, entre outros, foram nascendo o maxixe, do qual vieram o samba e o choro. Mas as ladainhas propriamente ditas mantiveram-se como um registro oral na memória da cultura (no sentido de coisa transmitida por tradição oral) das ladainhas originais, talvez. Essa memória popular é algo impressionante. Não se imagina que um texto oral seja mantido rigorosamente idêntico e imutável através dos séculos. Pelo contrário, a tradição oral reconhece a nova situação em que se reconta uma história acrescentando-lhe coisas ou as abreviando.

Mas vindo adiante, fazer de uma ladainha um blues é também algo impressionante. A Dente De Ouro da Blues Etílicos, por ter juntado ladainha e blues, é uma espécie de justiça histórica, uma mera recriação cujas referências são extremamente óbvias, ao mesmo tempo que no resultado da soma é uma criação genial. Tanto que não se pode pensar em fazer isso de novo sem que seja, agora sim, um plágio. Dente De Ouro foi uma sacada muito autêntica justamente pelas coisas já existentes que foram juntadas. A letra cantada pelo Blues Etílicos é uma forma simplificada da ladainha apresentada por Mestre Pastinha:


Ela tem dente de ouro
Ela tem dente de ouro
Ai meu Deus foi eu quem mandei botar
Vou rogar nela uma praga
Pra esse dente se quebrar

Ela de mim não se lembra
Ai meu Deus nem dela vou me lembrar
Ela de mim não se lembra
Ai meu deus nem dela vou me lembrar

Casa de palha é palhoça
Se eu fosse fogo queimava
Toda mulher ciumenta
Se eu fosse a morte eu matava

O próprio grande Vinícius de Moraes, após uma longa jornada de trabalhos diplomáticos em que conheceu o mundo, vinhos e queijos, afrouxou a gravata, quer dizer, queimou a gravata e abriu a camisa até quase o umbigo, mandou descer uma cerveja e uma porção de bolinho de aipim, e resolveu curtir a cultura brasileira mais de perto. Na verdade Vinícius não podia com cerveja porque sofria do mal de diabetes, então o que ele bebia era seu famoso “cachorro engarrafado”, o melhor amigo do homem, o uísque. Nesse período Vinícius compôs com seu parceiro Baden Powell, depois que este mostrou-lhe uma imitação de berimbau com o violão e uma melodia, uma canção em homenagem à capoeira. Berimbau tem um solo de violão que procura imitar o som do berimbau, assim como Dente De Ouro, do Blues Etílicos, tem um solo de guitarra na introdução cuja intenção é a mesma.

Os temas de Berimbau de Vinícius e Baden Powell são praticamente os mesmos que percorrem as ladainhas tradicionais, inclusive a Dente De Ouro: a moral, a traição, a luta, a tristeza entre outras coisas. Nesse sentido, pode-se supor que Vinícius não só conhecia o mundo, vinhos e queijos, como realmente se aprofundou em diferentes manifestações da cultura brasileira, como a capoeira e as ladainhas. Nessa canção, as frases melódicas são também inspiradas nas ladainhas, mas com uma pitada “bossa nova”: as frases monotônicas cantadas na distância de um semitom, causando aos ouvidos maior tensão. A parte mais melódica, que começa com “capoeira me mandou...”, por outro lado, já cumpria os preceitos da canção, embelezando o conjunto da música.


Berimbau

Quem é homem de bem não trai
O amor que lhe quer seu bem
Quem diz muito que vai não vai
Assim como não vai não vem

Quem de dentro de si não sai
Vai morrer sem amar ninguém
O dinheiro de quem não dá
É o trabalho de quem mão tem
Capoeira que é bom não cai
E se um dia ele cai cai bem

Capoeira me mandou
Dizer que já chegou
Chegou para lutar
Berimbau me confirmou
Vai ter briga de amor
Tristeza camará...


Links:


Baden Powell falando sobra a composição de Berimbau (e tocando) no programa Ensaio:

http://www.youtube.com/watch?v=j1sok3vvsBE&feature=related


Clipe de Dente De Ouro com Flávio Guimarães (harmônica) e Blues Etílicos:

http://www.youtube.com/watch?v=BqK7tj7KdDQ


Berimbau na voz do poeta, “Mestre Vina”:

http://www.youtube.com/watch?v=dwuGotQ2UI0&feature=related



Até a próxima!


Luis Felipe


P. S. A imagem é um selo brasileiro, mas para ser justo, copiei-o do site selos e filatelia: http://www.selosefilatelia.com/PastaLancamentos09/011.html

sábado, 13 de novembro de 2010

Indecentes



Tirem as crianças da sala. Falaremos de sexo!

Mas não sexo sexo. Sexo na letra de música, algo sugestivo, indireto. Indecente, desde que poético. Nada preciso ser dito (tão) diretamente. Ninguém foi mais indecente, talvez, que Serge Gainsbourg, o compositor francês narigudo e orelhudo, mas “pegador”. Pegou Brigitte Bardot, inclusive. E além desse item no currículo que, por si só, já é impressionante, também influenciou um pá de manos da pá virada, justamente por falar de intimidades. Se pudéssemos, aqui, estabelecer na “língua oficial” o adjetivo gainsbourguiano (no filme Gainsbourg, Vie Héroïque, lançado este ano, usa-se o adjetivo), eu diria que algumas canções são gainsbourguianas. Entre elas, e talvez principalmente, a Cama e Mesa, de Roberto Carlos: “quero ser (...) o sabonete que te alisa embaixo do chuveiro, a tolha que desliza pelo corpo inteiro”. E enquanto Serge Gainsbourg fazia músicas polêmicas e sensuais na França, entre os 1970 e 1980, Barry White fazia algo similar nos EUA. Barry White, nesse sentido, também era gainsbourguiano: “tonight when we make love / I'm gonna work your body with my tongue” (algo como “hoje a noite, quando fizermos amor, eu vou lamber você todinha”!!! mas dito não tão diretamente, admito, o tradutor é que foi meio mal intencionado), são versos de Staying Power.

O maior sucesso da carreira de Serge Gainsbourg foi Je T'Aime Moi Non Plus, que é uma gemeção só. Parece que ele teria feito a canção ainda quando se encontrava com a loirinha sexy-babarella Brigitte Bardot, um dueto, mas que ela não teria podido gravar por motivos pessoais. A canção ficou engavetada um tempo e a inglesinha Jane Birkin encarou a bronca, em todos os sentidos: viveu um romance público, ao mesmo tempo que semi-nua, com o compositor e cineasta Gainsbourg. Ah, sim, e gravou com ele a música que foi um escândalo, mesmo no país que lançara juntamente com a Itália, uns anos antes da música, um filme, também escandaloso, O Último Tango Em Paris, em que estrelou Marlon Brando no papel de canibal. Bem ou mal dizendo, era a França botando as manguinhas (e outras coisas) de fora.

Mas uma coisa interessante, para poder falar de referência, é que um verso de Je T'Aime Moi Non Plus pode ter inspirado a composição Entre Seus Rins, da banda paulistana IRA. Além de todos os “je t'aime” da canção francesa, que obviamente viram os “te amo” ou mesmo “gosto de você” em português, a canção francesa tem um verso ali que é essa metáfora biológica, ou algo assim: “entre tes reins”. Essa expressão não precisa necessariamente ser traduzida como “entre teus rins”. Importa é que se entenda de que região do corpo se está falando: região interna na área dos quadris. Como se acessa a região interna é bem simples, e eu não preciso explicar porque o leitor e a leitora sabem. Aliás, na canção francesa, também diz a mulher, alternando com o homem do dueto: “tu vas, tu vas et tu viens / entre mes reins”. Alguns tradutores, inclusive, com toda a propriedade (eu não sou tradutor de francês) vão suavizar a metáfora biológica intra-anatômica dizendo “quadris” no lugar de “rins”, tornando menos explícita a ideia de intercurso carnal. Essa opção na maneira de dizer até nos faz lembrar de Pro Dia Nascer Feliz, do Barão Vermelho, que tem um verso que é “no vai e vem dos seus quadris”, que a gente podia achar escandalosa, indecente, antes de entender o que se diz na música de Gainsbourg.

Mas o Edgard Sacandurra, guitarrista que compôs a música para o IRA tocar, quis mesmo ir na carne. Na Entre Seus Rins existe só o ponto de vista do homem, que está fazendo uma declaração de amor e passando uma cantada direta, ainda que indireta. Ele começa com “te amo / isso eu posso te dizer / como eu gosto de você”. Porque tem coisas que talvez ele não possa ou não deveria dizer ainda. Mas a cantada prossegue e a coisa vai esquentando: “seu beijo / minhas mãos em seu quadril / madrugada tão febril / ah, como eu gosto de você”. E há um clímax quando, depois de uma longa e bonitinha declaração de amor, não se aguenta e diz o que não podia dizer no início: “me deu um dedo, eu quis o braço e muito mais / agora estou a fim / de ficar entre seus rins”. Sensacional!


Entre Seus Rins

Te amo, isso eu posso te dizer
Como eu gosto de você
Como eu gosto de você

Te quero, isso é tudo que eu sei
Que eu gosto de você
Ah! Como eu gosto de você

O que eu sinto não é difícil explicar
É o amor como uma fonte a jorrar... pura emoção

E o meu sonho nem consigo me lembrar
Mas o certo é que você estava lá
Sonho real, sonho real

Seu beijo, minhas mãos em seu quadril
Madrugada tão febril
Ah! Como eu gosto de você

Meu exílio é em seu corpo inteiro
És meu país estrangeiro
Ah! Como eu gosto de você

Me deu o dedo eu quis o braço e muito mais
Agora estou a fim de ficar entre os seus rins

De ficar entre os seus rins
De ficar entre os seus rins
De ficar entre os seus rins
Seus rins

Link para Je T'Aime Moi Non Plus, letra e canção:

http://letras.terra.com.br/serge-gainsbourg/61635/



Até a próxima!

Luis Felipe

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Os M&M's Marrons


Pelo menos dois fatos relacionados à banda americana Van Halen eclodem aqui neste blog de maneira bem significativa. Um deles foi uma frase num clipe, ou melhor, o clipe todo. Lembro de ter assistido a esse clipe na MTV brasileira quando ela recém tinha vindo pra cá, e eu tinha talvez uns 14 ou 15 anos. Pode-se dizer que um clipe muda a vida de uma pessoa? Seria exagero ou não, podemos nos perguntar. Porque sempre alguma coisa que a gente lê pode condicionar, se eu não estiver exagerando de novo, um destino. Da mesma maneira como há obras que transformam o mundo, aquilo a que a gente se expõe pode direcionar a nossa vida. Uma vez que o futuro não está feito, trata-se somente de possibilidades do que pode ou não vir a ser, a cada instante podemos refazê-lo. Isto significa, bem dizendo, mudar a vida. Direcioná-la para um caminho. E como diz o provérbio, uma escolha implica em exclusões. E por nada de coincidência que o clipe a que me refiro é da “balada” hardrock Right Now; e dentro do clipe – onde aparecem frases que dialogam com o título – uma frase me marcou bastante: “right now maybe we should pay attention to the lyrics”. E do que se trata mesmo o cifraamodaantiga?

O outro fato é o que dá título a essa postagem, a história dos M&M's marrons. Para quem não sabe, os meninos do Van Halen costumavam colocar no contrato dos shows uma cláusula ridícula que proibia a produção de lhes servir M&M's marrons. Isto mesmo, o chocolatinho oval colorido por fora. Frescura? Não. Diziam que isto lhes garantiria que a produção tivesse mesmo lido todo o contrato, cada vírgula. Certa vez, a que fez esta história conhecida do público, numa apresentação que fariam no Colorado, eles se deram conta de que os organizadores não haviam lido o contrato porque tinha no camarim onde estavam começando a se instalar uma tigela cheia de M&M's, principalmente marrons. Nisso o vocalista nesse período, David Lee Roth, sai do camarim e quebra o palco a pontapés.... Quem gosta de emitir julgamentos precipitados já vai dizer, provavelmente – “que caras mais idiotas, onde já se viu, quebrar um palco por causa de da cor do açucar de confeiteiro...”. Mas a história verdadeira é outra. Eles tinham equipamentos caros e pesados e, nos primórdios das grandes produções, the early eighties, pouca gente oferecia condições para um show de peso, em todos os sentidos, instalar-se com segurança. Assim como a cláusula dos M&M's marrons, havia cláusulas a respeito da estrutura de palco para suportar o equipamento e os músicos, o que, se pode ser destruído a pontapés, não estava de acordo com o que fora estabelecido no contrato. Foi um custo para a organização do espetáculo ter que reconstruir o palco, mas uma economia para todos (porque evitou danos maiores) e se tornou um causo curioso, contado a cada vez diferente, para a história do rock'n'roll.

E se o “pay attention to the lyrics” tem, evidentemente, tudo a ver com o blog em que se analisa de perto letras de música, prestando cuidadosa atenção, pergunta-se: o que a história dos M&M's marrons tem a ver com o blog? Bom, aí é meu desbafo. Acho que não leem o blog, ou não percebem as “cláusulas ridículas”, como a dos M&M's no contrato do Van Halen, que todo texto tem. Porque eu escrevo barbaridades, absurdos. Volta e meio acho que terá gente me xingando - “que absurdo, comparar alhos com bugalhos!” Mas não, alguns elogios de gente próxima, amigos e só. Mas tudo bem. A história dos M&M's contada aqui também vale mais do que esse desabafo.

E para voltar ao que interessa, Righ Now é um clássico, não só americano, ou do rock (nem só do hardrock). É um clássico geral. Não marca uma época, talvez pelo estilo, somente, mas pela letra, por outro lado, pode sempre ser executada que sempre será contemporânea. E justamente porque fala disso – “agora mesmo” - esse presente que a gente pensa que pode apreender, porque é o agora, é próximo, não depende da memória como o passado, nem da prospecção como o futuro, e ainda assim é tão fugidio... Tanto que se diz ali na música “catch that magic moment, do it” (agarre este momento mágico, faça!). E o presente é mágico porque é o único tempo que realmente existe em termos de possibilidade de ação. Sim, passado e futuro, talvez até o próprio presente, vão estar em relação de causa e consequência, de estimativa e resultado; mas é só no presente que a ação é possível.

Há, nesse sentido, uma proposição construída para músicos em alguns dos versos: “se você perde a pulsação, perde o ritmo / e nada volta para o lugar / o que se perdeu por um segundo / sai um pouco do seu passo”. Essa ditadura do tempo sincronizável realmente existe na música executada, pois, para dois ou mais tocarem juntos, precisam seguir a mesma pulsação, manter o mesmo ritmo, estar no mesmo passo. Mas e se a gente se perde no compasso, como é que fica? A solução está no próprio tempo dito “agora”, pois o agora é sempre a possibilidade de se refazê-lo nesse próprio instante: “got to turn, come on, turn this thing around / right now” (algo como “tem que resolver, vamos, resolva agora mesmo”), porque o músico que se perde pode sempre retornar e acompanhar os colegas exatamente onde eles estão. Não é necessário, nem na música nem na vida, fazer Da Capo. Mas muito mais do que fazer sentido para músicos, a metáfora de retomar não de onde se parou, mas a partir de onde se está, faz sentido para todos, pois a vida é isso mesmo, um eterno recomeço a cada instante. O que constitui passado e futuro, mesmo implicando relações de causa e consequência, é a ação no presente.

Fiz essa postagem pensando na história dos M&M's, porque na postagem anterior eu disse coisas horríveis (disse que um não tem talento, disse que o outro era bêbado e louco de rua, chamei o outro de feio), e mais honestamente do que apagar a postagem, como se fosse possível simplesmente “apagar os erros cometidos”, eu ajo com outra postagem, tentando alcançar a sincronia.

Curtam aí o clipe do Van Halen, prestando atenção tanto à letra quanto as frases mostradas no clipe. Façam isso "agora mesmo"! É uma sugestão...


Right Now

Don't wanna wait 'til tomorrow
Why put it off another day?
One by one, little problems
Build up, and stand in our way. oh

One step ahead, one step behind it
Now you gotta run to get even
Make future plans don't dream about yesterday, hey!
Come on turn, turn this thing around

(right now!) Hey! it's your tomorrow
(right now!) Come on, it's everything
(right now!) Catch your magic moment
Do it right here and now
It means everything

Miss a beat, you lose a rhythm
And nothin' falls into place
Only missed by a fraction
Slipped a little off your pace

The more things you get, the more you want
Just trade in one for another
Workin' so hard to make it easy
Got to turn, come on
Turn this thing around

(right now!) Hey, it's your tomorrow
(right now!) Come on, it's everything
(right now!) Catch that magic moment
Do it right here and now
It means everything
It's enlightened me
Right now
What are you waitin' for?
Right now

(...)

It's what's happening
Right here and now
Right now, it's right now
Tell me, what are you waitin' for?
Turn this thing around

Até a próxima!


Luis Felipe

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

"Altos" Retratos


Autorretratos são obras recorrentes entre artistas de todas as materialidades, inclusive entre músicos. Os que fazem sua imagem distorcida, para bem ou para mal, são os melhores ou, melhor dizendo, a única possibilidade. Quem é capaz de descrever a realidade? A realidade aparente? A realidade objetiva? E o que é a realidade? Porque imagem de algo ou de alguém é sempre uma representação. E valer-se do culto ao belo – a arte - para dizer-se feio – o autorretrato - é o que há! A auto-imagem piorada pode ir por duas vias interpretativas: a irônica ou a realista estritamente denotativa, se é que isso é possível. Para dar um exemplo bem claro: Chico Buarque, em Até o Fim, embora talvez não tivesse a intenção da ironia, e nós conhecendo sua genialidade, seu sucesso e seus enfrentamentos, não conseguimos ver Até o Fim senão como ironia, como uma obra-prima da auto-ironia. Se o tal do anjo safado, o chato do querubim da tradição drummoniana, determinou que ele, o genial Chico, seria todo ruim, o que sobra pra nós?
Falando em autorretratos, ou melhor, em altos autorretratos, na medida em que estes podem estar, digamos “desregulados”, “desnivelados” da sua imagem verdadeira, se é que isso existe, convenhamos que o se dizente muito bonitinho ou ajeitado não serve pra nada, nem pra rirmos. Melhor é sempre quando nos deparamos com o autorretrato de um autor que contém algo como ironia, algo que nos ponha a dúvida. Somente aí pode residir algo de verdadeiro. Nada que é aparentemente bom demais é de verdade. Embora eu goste muito do Erasmo Carlos, “ vou dar uma festa, sou o dono da festa, pertenço aos dez ma-a-a-a-ais” não é bem o que a gente quer ver numa canção, um autorretrato cujo eu-lírico fique se gabando de seus cabelos até os seus sapatos. Quem precisa de autoafirmação assim que vá ver o psicanalista. Até porque a diferença entre o eu da canção, que é personagem-narrador, e o autor, pode ser enorme, então, por que fazer uma letra do tipo “se ninguém gava, Zeca gava”? Fica uma bosta. O autorretrato é a transposição na materalidade artística de algo em si mesmo, físico ou psicológico, que intimamente incomoda seu criador . O autorretrato serve para fazer sobressair os defeitos, e não qualidades. Nesse sentido, autorretrato e caricatura de si são coisas extremamente redundantes. Os outros que digam, se for o caso, que não coincidem criador e criatura, sendo esta a figura própria do criador na sua própria concepção.
Mas eu queria mesmo era falar de um compositor e poeta maldito, e que influenciou uns que queriam ser malditos. Tá certo, há muitos malditos, mas nenhum mais maldito que Sérgio Sampaio, indiscutivelmente. E na medida em que ele era maldito e produzia autorretratos, em composições “quase pessoais”, “quase autobiográficas”, fez parte de uma linhagem poética, a de Augusto dos Anjos: “sofro, desde a epigênese da infância / a influência má dos signos do zodíaco”. Falando em signos, uma curiosidade: os sonetos de Augusto dos Anjos foram publicados, tardiamente em relação a sua produção, há quase um século. A conhecida Born Under A Bad Sign, blues de Albert King, data de 1967, nos Estados Unidos. Não há referência nem influência, nesse caso, talvez uma coincidência separada por várias décadas, língua, cultura e materialidade artística. Talvez! O que há, de fato, em comum entre Albert King, Augusto dos Anjos, Sérgio Sampaio (e outros de que ainda vou comentar) são “ecos malditos”, que parece título de “filme de terror”, que é o título de uma composição de Sérgio Sampaio.
Mas para cumprir com o meu métier habitual, vou lançar a hipótese de uma referência. Conhece-se bem as influências musicais de Los Hermanos – desde o samba e a MPB, passando pelo ska, o harcore, o tudo-é-rock'n'roll, o reggae e até orquestra de pífaros. Não se fala muito, não necessariamente, nas “influências” que aparecem nas letras. Mas pode-se cogitar sobre as referências textuais.
Cara Estranho, que é, muito provavelmente, autorretrato de Marcelo Camello, e quer ele saiba disso ou não, paga os devidos tributos referenciais a mais de uma canção de Sérgio Sampaio. E olhem que isso é elogio pra caramba! Principalmente para um dos “feios, sujos e malvados” meninos dos Los Hermanos, que se inconformaram com o sucesso de Anna Júlia, que os fez “queridinhos” do Brasil, e por isso nunca mais fizeram a barba nem passaram mais a roupa quando iam se apresentar. Em algum ponto eles até conseguem ser “malditos”. Mas, lamento informar, parecem não ter a sina da desgraça. Se isso é bom ou ruim, não sei; é relativo. Sérgio Sampaio, por outro lado, viveu uma vida normal sendo meio louco, no bom e no mau sentido, e por conta disso passou até maus bocados, chegando em algum momento a situações de autodestruição em virtude do alcoolismo, e consequentemente de mendicância.
Uma diferença fundamental que existe entre Cara Estranho e alguns dos possíveis autorretratos de Sampaio, para começar, é que a composição de Camello é em terceira pessoa. Antes de isso ser um problema para análise, trata-se de uma estratégia na forma de dizer nem tão incomum, que é falar de si na terceira pessoa, como se ele mesmo se visse objetivamente de fora. Começa com os versos “olha só... que cara estranho que chegou / parece não achar lugar / no corpo em que deus lhe encarnou”, criando a imagem do sujeito desajeitado. Sérgio Sampaio, por outro lado, em Velho Bandido, por exemplo, diz tudo na primeira pessoa: “eu que só tenho essa cabeça grande / penso pouco, falo muito e sigo pra adiante”, e em Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua, embora na primeira pessoa, usa como estratégia de dizer atribuir o ponto de vista a terceiros: “há quem diga (...) que eu fugi da briga / que eu caí do galho / que eu não vi saída / quando o pau quebrou”. E saindo do sujeito desajeitado, passando para essa referência à briga, o narrador de Cara Estranho vai dizer, ironicamente talvez, que o ele é o ingênuo ganhador: "será que ele vai perceber / que foge sempre do lugar / deixando o ódio se esconder (...) que ganha a briga sem suar / e ganha aplausos sem querer”.
É interessante que Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua virou marcha de carnaval, praticamente, só por causa da letra e do refrão, e que Cara Estranho não tem nada a ver com carnaval, é uma música pesada. Mas essa referência a carnaval vai aparecer irremediavelmente em outras composições de Marcelo Camello, com os Los Hermanos ou já em carreira solo. O “meu bloco” parece ecoar em O Bloco Do Eu Sozinho, título de CD dos Los Hermanos, e uma das faixas é Todo Carnaval Tem Seu Fim, que tem uma letra ótima, que mexe justamente, entre outras coisas, com a idéia de se repensar os grandes clichés (“toda banda tem um tarol, quem sabe eu não toco”) e as rimas óbvias (deixa eu brincar de ser feliz / deixa eu pintar o meu nariz”). E outra, Samba A Dois, também de Camello com os Los Hermanos: “o meu bloco tem sem ter e ainda assim / sambo bem a dois por mim / bambo e só, mas sambo sim / sambo por gostar de alguém”, que na sua indefinição e ambiguidade ("tem sem ter") tem algo dos versos da "marcha carnavalesca" de Sampaio: “eu, por mim, queria isso e aquilo / um quilo mais daquilo, um grilo menos disso / é disso que eu preciso ou não é nada disso / eu quero é todo mundo nesse carnaval”. E ainda Copacabana, da carreira solo de Marcelo Camello, é uma marcha carnavalesca em sentido estrito.
Outro aspecto a ser apontado em Cara Estranho, e isso é bem oposto a qualquer coisa feita por Sérgio Sampaio, é em relação a ser “poeta maldito”. Parece que Sampaio não fez esforço nenhum para sê-lo. E Camello, embora seja feio que é um raio, e que parece filho de Serge Gainsbourg com a Janis Joplin (e com o talento misturado dos dois, para sua sorte), admite seu lado de pretenso bom moço atingindo, assim, pela ironia presente na essência do autorretrato, parecer maldito. Mas ser feio não é garantia de ser maldito. Porque feio ele é mesmo, nem precisa dizer. E quem liga pra isso? As mulheres, talvez; porque os homens acham isso tudo engraçado. Eu acho. Mas voltando ao assunto, nos versos: “tem tudo sempre às suas mãos / mas leva a cruz um pouco além / talhando feito um artesão /a imagem de um rapaz de bem”, há uma referência clara à criação artística, que é cultural e nesse sentido se opõe ao que é natural. Então, se o sujeito precisa talhar feito um artesão a imagem de um rapaz de bem, deve ser porque na verdade ele não é isso, mas faz de tudo para convencer a si e aos outros de que é. Assim, ele se aproxima, pela sua obra, ao que era Sérgio Sampaio, pela vida que se vê em sua obra.
Mudando um pouco de assunto, para falar de estilos ou gêneros musicais, outra coisa em comum entre Sérgio Sampaio e Marcelo Camello é a mistura que fazem de rock e de samba, mas não ao modo tradicional do samba-rock da escola de Jorge Ben a Seu Jorge. Tanto Sampaio quanto Camello, em algum momento, vão fazer um samba mais tradicional, assim como farão um rock tradicional, como se fossem coisas separadas. E diferente do samba-rock que eu falei, nota-se neles uma “contaminação” de um gênero no outro mas de maneira obtusa, que é para dizer pouco, porque não sei como dizer bem. Mas explico; em Samba A Dois, por exemplo, que é uma canção, que aqui se entenda sem a maquiagem dos instrumentos, cuja composição é um samba tradicional, é tocado na versão dos Los Hermanos com guitarra meio distorcida, baixo e bateria, o que faz com que não se configure como um samba tradicional, que deveria ser tocada com violão, cavaquinho, pandeiro, etc.
De forma mais ou menos similar, Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua, que foi hit num carnaval, também não é rigorosamente um samba, menos ainda que Até Outro Dia, dele mesmo, gravada pelo sambista João Nogueira praticamente sem alteração. Até Outro Dia, na gravação do próprio Sampaio tem os bordões de um choro, cujas frases melódicas foram mais ou menos adaptadas para bandolim, metais e piano na versão de Nogueira. Mas é um samba, indiscutivelmente. Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua, muito pelo contrário, tem na introdução um solo de guitarra, além de um solo de saxofone em escala cigana a la Mutantes ou algo assim, fazendo aquela linha hippie evolutivo, ou progressivo alternativo. São, enfim, os ecos dos malditos nos seus autorretratos...

Links para as letras:

Velho Bandido:
Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua:
Até Outro Dia:

Cara Estranho:
Samba A dois:
Todo Carnaval Tem Seu Fim:


Até a próxima!

Luis Felipe

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Em tempos de mudança

Em tempos de mudança, os bons compositores vão fazer essa música. O blog, que predominantemente procura achar coincidências em músicas de diferentes compositores, que fazem a devida e não necessariamente assumida referência, também precisa se adaptar aos tempos de mudança. E isso significa não se fechar para a influência de fora. Não vivemos numa bolha. Quer dizer, eu acho que eu vivo e sou feliz assim. Mas sei que isso é mentira. A influência de fora é muito significativa e, felizmente, muitas vezes, é significativa no bom sentido.

Mas quem é o compositor de música popular (ou folk, para usar o termo na língua do próprio país de origem dele) mais ouvido, cultuado, às vezes polêmico, a quem se faz referência, de quem se faz versões, de quem se regrava sempre suas músicas? Uma dica, só uma dica – é dos Estados Unidos. Só há uma resposta possível: Bob Dylan.

Não exagero quando digo que há muitas referências, diretas ou indiretas, explícitas ou implícitas, assumidas ou dissimuladas, à obra de Bob Dylan. Eu não arriscaria dizer que ele é um dos compositores mais gravados do mundo, mas pode ser. Eu não poderia enumerar aqui tudo, mas posso citar alguns que gravaram alguma música sua: Jimmy Hendrix, The Rolling Stones, Johnny Cash, Nick Cave, Neil Young, Eric Clapton. Guns'n' Roses, George Harrison, Elvis Presley, só para falar dos mais conhecidos. Sim, a “lista” é grande (ver último link no final da postagem).

Entre os brasileiros, são até comuns versões de canções de Dylan, como Caetano Veloso (versão para It's All Over Now, Baby Blue), que ficou com o título em português de Negro Amor, já regravada por Gal Costa e Humberto Gessinger, que eu lembre, e Knockin' On Heaven's Door ("Batendo Na Porta do Céu") com Zé Ramalho e vários outros; ou gravações diretamente em inglês mesmo, como Jokerman, na voz do Caetano Veloso, de novo. Mas não é só a Caetano que Dylan cantou. Tom Zé e Zé Ramalho são, ou foram em alguma fase, compositores quase estritamente dylanianos, assim como era Raul Seixas, embora se dissesse discípulo de Elvis Presley. E ser dylaniano não é ser limitado, nem tampouco um imitador. Significa ter em alguma das suas composições uma canção cuja letra seja meio falada, e que seja uma grande letra, falando de assuntos sérios. Sempre uma grande letra, em termos de conteúdo, principalmente, mas também em tamanho, muitas vezes. O que é Avohai e Chão de Giz do Zé Ramalho, entre outras, senão composições que fazem referência quase explícita ao estilo de Dylan? E Metrô Linha 743 e Ouro de Tolo, de Raulzito? Mas tem muito mais, sempre, com certeza. Mas como eu sei menos que a metade, e o resto eu ignoro, fiquemos com esses exemplos acima.

No entanto, para forçar um pouco a barra, para variar, eu vou tentar mostrar a referência de Bob Dylan numa música onde isso pode passar despercebido. Também tem bastante disso. E não é por maldade que os compositores fazem isso. Pode ser uma influência, sei lá. Mas nesse terreno do psicológico não entraremos, e nem nos interessa. Interessa, sim, a referência - coisas que podem ser apontadas nas letras.

Pensado justamente nesse tema, o sugerido pelo título da postagem, “em tempos de mudança”, o conhecedor de Dylan certamente poderia me apontar mais de uma música. Mas certamente a principal seria nominalmente The Times They Are A-changin'. E a forçação de barra será encontrar a referência a essa música na canção Ninguém Faz Ideia, de Lenine. Diferentemente daquelas composições que têm o estilo meio falado de algumas composições de Dylan, Ninguém Faz Ideia é o estilo Lenine. Então não é pelo estilo que se faz a referência a Dylan, já descartando de primeira um aspecto, digamos, estético-musical. Onde está a referência, então? Ninguém faz ideia... (brincadeira)

Eu digo que está na letra, e não de uma forma clara. Lenine é um compositor muito inteligente, um dos poucos que tem capacidade de fazer referência em diversos níveis, possíveis ou até imagináveis, explicitamente e não. Cabe ressaltar que ele não necessariamente "fez" essa referência, pois isso pode ser encontrável à revelia do autor. Acontece quando uma coisa é publicada e a interpretação é de quem a faz. Mas vejamos, adiante, o porquê da possível referência nessa música de Lenine.

Para começar, o tema sobre a mudança. Enquanto Dylan precisava dizer, de forma direta, que “os tempos estão mudando”; Lenine procura ir um pouco além, dizendo que, além de os tempos estarem mudando, e nós e o mundo mudando com o tempo, ele sugere que "ninguém faz ideia" do que o futuro reserva. Ou seja, num caso é a mudança que se anuncia presente, no outro, configura-se a mudança na noção que se tinha de futuro, que é cada vez mais nebuloso, pois, se tudo pode ser no futuro, fica difícil imaginá-lo de uma forma só. Outra coisa interessante a se observar na duas letras, como uma coincidência referencial, é a enumeração de tipos sociais, estereótipos, profissionais, que os compositores listam. Dylan se dirige a escritores e críticos, senadores e deputados, mães e pais; e Lenine fala de muitos, muitos tipos, por exemplo, “malucos e donas de casa / vocês aí na porta do bar (...) os que fazem greve de fome (...) os líderes de última hora (...) os exilados, os executivos / os clones e os originais”.

Enquanto a canção de Dylan se inscreve sob o rótulo de canção de protesto, ao mesmo tempo que cria o gênero, convocando as personagens tradicionais da sociedade a perceber a mudança, a não se adiantar no julgamento dos demais, a ser mais acessíveis, a levar os jovens mais em consideração; a grande sacada de Lenine é amplificar a enumeração dos tipos tradicionais enumerados por Dylan. Ou seja, a interpretação para Ninguém Faz Ideia é de que a mudança de que talvez se fale reflete justamente nas identidades, nos papéis sociais. Assim, o compositor cria uma referência não-explícita a um hino da mudança social, The Times They Are A-changin', de Bob Dylan, mas com uma solução criativa de duas mãos – por um lado leva a questão da mudança para além do presente, que tudo muda tanto que acaba que a gente não faz ideia do que está por vir, e por outro, sintagmatiza seus tipos e papéis sociais ora na função de vocativo, ora na função de objeto. Melhor explicando, devido ao refrão ficar repetindo “ninguém faz ideia de quem vem lá”, os papéis desempenhados pelas pessoas nas duas primeiras estrofes os tipos podem ser vocativo (“vocês aí na porta do bar” é o exemplo mais evidente disso), e nas seguintes, quando vai literalmente enumerando tipos que, por mais absurdos que possam parecer, existem mesmo, como em “os tais que traficam bebês” e “o mito que se auto-destrói", faz-se a sugestão de que são justamente estes papéis sociais novos, bons ou ruins, que virão sempre a surpreender-nos. É bastante coisa para se pensar, né?

Como diria Tom Zé, “Bob Dica, diga, Jimy renda-se”, pois os tempos estão mudando, e ninguém faz ideia de quem vem lá.


Até a próxima.


Luis Felipe


Abaixo, link para as letras:

http://www.bobdylanlyrics.net/timchang.html

http://letras.terra.com.br/lenine/119265/

http://wapedia.mobi/en/List_of_artists_who_have_covered_Bob_Dylan_songs

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Pernas

De novo eu volto com o tema da referência, seja ela proposital ou acidental. Eu, por minha conta e risco, acho que as referências nas composições de Vitor Ramil não são acidentais, não são mero acaso. Acho que são propositais, mas enfim, que ninguém se comprometa com isso. É só uma opinião mesmo, que talvez nem as análises sustentam.

Dessa vez acho que encontrei mais uma referência numa letra de Vitor Ramil, que sabe tudo de música. Se não for referência propriamente dita, então é uma coincidência. Mas uma coincidência muito interessante: o tema!

Pois, se o título dessa postagem começa com “pernas” e o leitor conhece as composições de Vitor Ramil, pergunto, em qual delas é mencionada a palavra pernas? Exato para quem disse Foi No Mês Que Vem. Hás dois versos; um em que ele não diz a palavra “pernas”, mas sugere numa descrição que evoca a clássica cena de Marilyn Monroe em O Pecado Mora ao Lado – “quando o vento fez do teu vestido um dom que Deus te deu” e em outro verso, desta vez mais explicitamente - “ digo aqui tô eu, que te amo e às tuas pernas quero bem”. Sim.

Não. Quer dizer, eu não estou escrevendo para falar da referência à cena do filme com a Marilyn, embora faça essa referência para desenvolver o argumento. A referência a que me refiro é uma composição de Sérgio Ricardo, aquele que musicou o filme de Glauber Rocha, Deus e o Diabo Na Terra do Sol. Qual o nome da composição de Sérgio Ricardo? Pernas!

Vamos, então, às coincidências:

As duas letras narram a situação de uma cantada, isto é, um homem que aborda uma mulher desconhecida e diz algum gracejo, para conhecê-la, e quem sabe o que mais (ele poderá tentar ou conseguir). E claro, há nessas narrações em tom poético a descrição de uma, chamemos, “dança de acasalamento” entre humanos. A fêmea exibe, ou não – e nesse caso apenas sugere – seus melhores atributos físicos. O macho se encanta, estufa o peito, eriça-se todo, rodeia a fêmea e finalmente a aborda. Uma diferença fundamental, e a graça das letras, é que numa das canções a coisa parece ser bem sucedida, e na outra não.

Nas duas canções a descrição ocorre a partir do ponto de vista do que faz a abordagem, o homem. Há referências muito claras em relação a aspectos visuais, isto é, o ponto de vista é, rigorosamente, o lugar de onde se vê. Em Foi No Mês Que Vem, diz-se, no primeiro verso, “vou te vi, ali deserta de qualquer alguém”, estabelecendo-se o ponto de vista. Em Pernas, há um jogo interessante; o início da abordagem é sinalizado por um sinal de trânsito: “sinal verde / atravessei pra lá do sol”; e a proibição da abordagem é sinalizada pelo sinal oposto, nos versos finais “luz vermelha no sinal do sol pra mim / perigoso atravessar pra lá do sol”; justamente depois que “uma buzina conversível / chamou para o conforto / as pernas lindas”.

Outra coisa que pode ser explorada na construção da letra de Pernas é a supressão de uns sujeitos, tanto gramaticais quanto, digamos, “humanos”. Isto é, há frases nominais, por um lado e, por outro, são os objetos da visualização do eu-lírico que efetivam as ações: as pernas levando a dona para passear, o bom senso a não permitir palavras, a buzina chamando as pernas para o conforto, etc.

Em Foi No Mês Que Vem, no entanto, não há sinal vermelho para a abordagem. Porém...

Existe a questão dos tempos verbais contraditórios, num jogo entre passado e futuro que, menos que “contraditório” em sentido estrito, tem uma intenção poética, talvez, de se criar o fato entre o porvir e o realizado, que não é um limbo temporal, mas o próprio presente inapreensível, que imediatamente escapa pois nem o "presente gramatical" é capaz de descrever este presente mítico e sempre fugaz, tendo em vista, por exemplo, que ao terminar de dizer “escrevo” já virou “escrevi”.

Uma coisa de que os compositores se serviram, coincidentemente, foi da questão da dissonância. Sérgio Ricardo, inclusive, nas primeiras frases musicais, dos primeiros versos, procura talvez provocar um efeito de buzina na melodia, com cada palavra cantada em sttacato e numa nota diferente, algo que se assemelharia às buzinas no trânsito congestionado. Claro, isso é interpretação. Eu jamais poderia dizer que houve intenção, porque isso não é acessível. E se perguntassem para o autor perderia a graça, desfazia-se o mito. Melhor deixar assim. Na canção de Vitor Ramil, a dissonância também é bastante explorada, nos acordes da harmonia e na própria melodia, com notas próximas e alguns cromatismos, inclusive. Aliás, há uma versão dessa música em que Ramil canta e ninguém menos que o Egberto Gismonti faz uns barulhos muito loucos no piano. Dissonância total. Ele faz uns arpejos, se eu consigo descrever em palavras, escalas ou acordes rápidos destacando nenhuma das notas da tríade, mas uma das notas dissonantes dos acordes. Acho que é isso.

Abaixo as letras, e mais abaixo ainda, link para as canções no Youtube, para quem não as conhece:



Pernas

Sinal verde atravessei pra lá do sol
Triste o sol e uma tristeza em mim
Porém... surgiu ao sol da tardinha um par de pernas lindas
Levando a dona delas o meu olhar atrás
O meu bom senso não quis me permitir palavras
Sem que um olhar se fizesse esperança
No sol da tarde inspirei-me pra dizer ternuras
Ao lado daquelas pernas para a dona delas
Porém uma buzina conversível
Chamou para o conforto as pernas lindas
E eu devolvi ao sol da tarde a inspiração
Luz vermelha no sinal do sol pra mim
Perigoso atravessar pra lá do sol



Foi No Mês Que Vem

Vou te vi
Ali deserta de qualquer alguém
Penso, logo irei
Que seja antes minha que de outrem
Quando o vento fez do teu vestido
Um dom que Deus te deu
Claro que eu rirei
Ao vendo o que outro alguém não viu

Vou andei
E me chegando assim te cercarei
Digo, aqui tô eu
Que te amo e às tuas pernas quero bem
Já que estamos nós
Te sugeri-me então o que fazer
Claro que eu beijei
Ao tendo o que outro alguém não quis

E tudo isso
Foi no mês que vem
Foi quando eu chegar
Foi na hora em que eu te vi
E mais que tudo
Foi no mês que vem
Foi quando eu chegar
Na hora em que eu te quis

Vou fiquei
No teu chegado e tu chegada ao meu
Penso, grande é Deus
Um paraíso prum sujeito ateu
E pensando assim
Farei aquilo que o teu gosto quis
Claro, eu já ganhei de volta
Tudo o que eu quiser


Foi No Mês Que Vem:

http://www.youtube.com/watch?v=04dys23psfE&feature=player_embedded

Pernas:

http://www.youtube.com/watch?v=VHqlU1G67ik&feature=player_embedded#!


Até a próxima!

Luis Felipe