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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Problema de Gênero I

Aí está a grande questão da pós-modernidade. A discussão em torno do gênero sempre rende. A começar pelo conceito de gênero, que é muito abrangente. Sim, gênero é o que você quiser, e ponto. Há algum lugar em que isso se define melhor? Talvez no discurso acadêmico, pois a cada vez que se usa, precisa-se, justamente, delimitar o sentido. Mas a rigor, na prática do dia a dia, serve para qualquer coisa, desde a distinção entre “masculino” e “feminino” (e nesse uso é algo aproximado, mas não exatamente, a sexo masculino e feminino, macho e fêmea, respectivamente, que são conceitos, digamos, biológicos), tipos de textos, tipos de música; mas também pode-se chamar o tipo do automóvel de gênero (scooter, utilitário, SUV, monovolume, etc). E muito mais.

Essa abrangência de sentido nos coloca a seguinte questão – que significado, afinal, podemos entender a partir do termo “gênero”? Ora, se gênero é tudo isso que foi dito no parágrafo anterior, e muito mais, eu arriscaria dizer que, em um conceito abrangente, chamamos de gênero (no meio acadêmico ou não) aquilo que deve ser diferenciado. O gênero, seja lá do que for, tem “contornos” mais ou menos precisos, não necessariamente exatos. O problema de gênero, portanto, é quando se coloca o foco nesse “contorno” impreciso, esse espaço entre uma coisa e outra, quando elas são próximas. Porque nem tudo (ou quase nada) tem contornos precisos em termos absolutos.

Há muitos exemplos. A comida que não se encaixa muito precisamente em salgado ou doce, azedo, amargo, etc. O filme que não é absolutamente nem comédia, nem drama. A música que mistura os aparentemente irreconciliáveis (heavy metal e bases eletrônicas; rock'n'roll e samba, entre outros). O relacionamento que não é nem exatamente namoro nem somente amizade. E para piorar, a gente acha tudo isso ótimo. Claro, nem todo mundo acha tudo isso ótimo, porque sempre há os puristas, que reivindicam que tudo e qualquer coisa tenha contornos exatos, precisos e absolutos, para se localizarem no mundo e, por exemplo, irem num show do estilo de música que gostam sem se sentir ludibriados. “Tu chega lá e era show de música eletrônica”, já ouvi. E qual é a função dos ditos puristas. Justamente, fazer com que entre nós, pessoas, também haja a reprodução desse problema de gênero. Porque os puristas, ao reclamarem do que não está bem definido, evidenciam essa falta de contornos, ao mesmo tempo que podem se contradizer (o sujeito pode ser purista para música, mas não para filme... e assim por diante). Nem os puristas conseguem ser algo absoluto.

Podemos diagnosticar como tendo problema de gênero tudo o que você julgar “inclassificável”. Ou aquilo que dizemos que é “tão bom que não se encaixa num rótulo”. Acho que talvez poderíamos simplesmente aceitar que nem tudo se encaixa mesmo, nem tudo precisa ser rotulado, haja paciência. Mas nós, por sermos animais de linguagem, temos por hábito, obsessão, passatempo, e etc, a necessidade de ficar dando nomes para os fenômenos todos.

Mas onde entra a tal da pós-modernidade? Da seguinte forma: há não muito tempo, nós enquanto humanidade acreditávamos que as coisas tinham sentidos absolutos e que sempre era muito fácil diferenciar todas as coisas umas das outras. Designá-las em termos absolutos. Digo que era uma “crença” porque não necessariamente era algo verdadeiro, da realidade mesmo. Acontece que podíamos ignorar as sutilezas, e talvez até oprimir o surgimento do que não fosse entendido dentro de um rótulo preciso. Mas é fato que “bem” e “mal” já foram coisas muito mais precisas. Não são mais. São coisas relativas. Por exemplo, ao se dar esmola para alguém miserável, pensa-se fazer o bem, mas ao mesmo tempo pode ser o mal, porque se cria no que recebe uma dependência. Mas nem sempre, também, pois isso não pode ser dito que funciona assim absolutamente sempre. Cada caso é um caso específico. Difícil é generalizar. E para entender como essa falta de contornos, de sentidos precisos tem a ver com nosso modus vivendi, basta olharmos para um exemplo bem prático. Antes da luz elétrica, a luz solar determinava em termos absolutos o que era dia e o que era noite. O ritmo biológico de todos os animais, inclusive os humanos, era determinado pela luz do sol. Até o bem e o mal se baseavam na oposição luz do dia e escuro da noite. Agora nem dia, nem noite, nem bem nem mal já não reinam mantendo um sentido absoluto.

Com o advento da luz elétrica, ao longo de praticamente um século e meio, estendemos o dia. Estendemos tanto que agora, em muitos lugares não há distinção entre dia e noite. E o ritmo biológico da humanidade vai mudando, acompanhando as novas formas de trabalho e subsistência, por um lado, e de culto ao belo, regozijo, lazer, etc, por outro. Se vivemos numa época em que “não se tem horário”, pode-se trabalhar de noite e dormir de dia, pode-se ir numa rave que durará o dia e a noite, pode-se subverter a ordem do dia e da noite ou mantê-la; isso também acontece com outras coisas, todas. Essa falta de contornos precisos se reflete em várias coisas na nossa existência. Por isso que é uma condição da pós-modernidade. Não é algo que alguém “inventou” para atribuir sentidos relativos aos fenômenos. É uma condição da realidade em que vivemos. Até o átomo que era, na física, o último reduto da exatidão (átomo = indivisível), já não é mais certeza. As hipóteses sugerem que no interior dos átomos se tem ora vazio, ora caos. Complicado, né!? Isso tudo é condição da era em que vivemos, mas também contradição. A contradição caracteriza muito melhor a pós-modernidade do que qualquer outra coisa. Cada vez que surge algo que se quer “sem limites”, há quem reivindique os contornos seguros, para se saber onde estamos, com o que estamos lidando. Também é uma coisa nem sempre evidente o que vou dizer, mas é que certas mudanças às vezes levam alguns anos para se configurar, talvez décadas, mas sempre levamos muito mais tempo para compreender os fenômenos. Então, o que se percebe na dita “pós-modernidade” não começou agora. São mudanças que vêm se configurando há muito tempo, muito tempo mesmo. E que quando se chega num excesso, os sentidos gritam querendo ser compreendidos. A pós-modernidade é essa histeria de sentidos gritando. Durma-se com um barulho desses...

Para brindar essa postagem que inaugura uma série no blog, em que vou falar sempre de problemas de gênero na música ou na letra de alguma canção, vou começar com uma composição genial de Carlos Lyra:


Influência do Jazz

Pobre samba meu
Foi se misturando, se modernizando, e se perdeu
E o rebolado cadê?, não tem mais
Cadê o tal gingado que mexe com a gente
Coitado do meu samba mudou de repente
Influência do jazz

Quase que morreu
E acaba morrendo, está quase morrendo, não percebeu
Que o samba balança de um lado pro outro
O jazz é diferente, pra frente pra trás
E o samba meio morto ficou meio torto
Influência do jazz

No afro-cubano, vai complicando
Vai pelo cano, vai
Vai entortando, vai sem descanso
Vai, sai, cai... no balanço!

Pobre samba meu
Volta lá pro morro e pede socorro onde nasceu
Pra não ser um samba com notas demais
Não ser um samba torto pra frente pra trás
Vai ter que se virar pra poder se livrar
Da influência do jazz


Nessa canção, que ele chama de “sua primeira canção de protesto”, há uma crítica, mas não exatamente um crítica, uma brincadeira talvez, e que aponta para um problema de gênero naquele estilo. A Bossa Nova, embora muito se discuta, no final da discussão sempre alguém diz – é samba. Mas, ora, samba é um pouco diferente. E a Bossa Nova surge, justamente, como um híbrido, algo que não é nem exatamente samba, nem exatamente jazz. E a canção de Lyra faz também menção a outros estilos latino-americanos que acabaram sofrendo essa influência, mas que nem por isso souberam recriar um estilo híbrido, polêmico e fantástico como a Bossa Nova. Sob o termo "afro-cubano" há uma série de ritmos caribenhos que também já namoraram com o jazz americano.

Finalizando, se na letra ele diz fazer o protesto, a música contradiz. A música tem as características rítmicas, melódicas e harmônicas da Bossa Nova, isto é, tem um sincopado (quando os tempos fortes e fracos não são seguidos à risca), melodia escalar que exige uma harmonia às vezes dissonante. Ou seja, é uma composição inteligentíssima porque faz referência à questão do hibridismo do estilo, mas que apresenta também uma contradição proposital, pois usa na música uma coisa que rejeita na letra, criando, inclusive, uma certa graça, um efeito de humor. A percepção do artista para captar algo que está acontecendo no mundo, na realidade, e que ele transforma em arte, isso é genial. Em termos absolutos!


No link a seguir, a letra, a cifra, e vídeo com o Carlos Lyra apresentando a canção: http://www.cifraclub.com.br/carlos-lyra/influencia-do-jazz/


Até a próxima!


Luis Felipe

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O poeta com cisco nos olhos

Quero voltar às milongas do Bebeto Alves, mas dessa vez para elogiar muito o poeta e compositor Mauro Moraes. Os dois discos de Bebeto Alves, o de 1998 – Mandando Lenha; e o de 1999 – Milongamento, são inteirinhos com composições de Mauro Moraes. O compositor é o mesmo e o intérprete é também o mesmo. Mas daí alguém vai perguntar afirmando – então Milongamento deve ser mesmo um “prolongamento” do disco anterior? Bom, aí eu já não te garanto. São, a rigor, muito diferentes. Mas qual a diferença?

A diferença é justamente aquela, muito sutil, mas extremamente evidente para os violonistas, e que talvez passe despercebida para um leigo nesses assuntos – o culto à “alma” do violão. Em outras palavras, en el Mandando Lenha la guitarra platina se queda por cuenta del monstro Lúcio Yanel. No Milongamento, o violão pampeano fica a cargo do aguerrido Marcello Caminha. Percebem a diferença? Por isso eu digo, é uma diferença de estilo que o violonista imprime à música, que é mais facilmente identificável por aficcionados do violão mesmo. Quem não entende a diferença assim, só por fazer referência aos guitarristas, pode ouvir os dois discos no site oficial do Bebeto Alves www.bebetoalves.com.br, clica no link rádio, e escuta nos dois discos, de 1998 e 1999, respectivamente, o violão de Lúcio Yanel e o de Marcello Caminha.

Enfim, como eu disse, e devo me fazer cumprir, essa postagem é para falar mais do poeta do que dos intérpretes. Falemos do poeta e da sua criação.

Parabéns a Mauro Moraes, em primeiro lugar, pela contemporaneidade dos temas, a sensibilidade da poesia e, o que é mais difícil, conseguir colocar-se como um autor autêntico de uma obra consistente – num mundo que está dominado pela fé do dogma regional, por um lado, e pelo vírus da varíola do consumismo da última moda, por outro. A obra, arrisco dizer, não se ajoelha inteiramente ao culto regional, pelo contrário, debate-a no interior das próprias letras. Ela é dotada de um hibridismo muito sutil, e que por isso pode ter sido a escolha de Bebeto Alves, que sabe ler a cultura. A obra de Mauro Moraes é uma afirmação de identidade regional, mas que faz sentido em um contexto ultra-regional, nacional, mundial, e por aí afora. É aquilo que chamamos de música que desafia as linhas imaginárias que são as fronteiras nos mapas. Porque o poeta deve ir além do senso-comum, mesmo o senso-comum científico.

Mesmo nas gravações de Bebeto Alves já há um certo hibridismo. Os violões, tanto o de Yanel como de Caminha são regionais, têm aquela aparência básica da música gaúcha que teve origem nos estilos ibéricos, que sofreram influência árabe e cigana; mas eles também se viram às vezes obrigados a ultrapassar isto, a ir na dissonância impressionista, na dissonância dos acordes de jazz lento e de bossa nova. Muitos diminutos, muitas sétimas e nonas. Sétimas aumentadas, também. Toda a música, toda a musicalidade pode estar aí, nos casamentos da tradição com a pós-modernidade, do oriente com o ocidente, e do nosso humilde pago com o Brasil e o mundo. Uma complexidade artística que leva um tempo para ser ser produzida, e o resto da vida para ser compreendida.

A canção que escolhi para dizer alguma coisa é Com Cisco Nos Olhos, do Mandando Lenha (1998). Linda canção, belíssima letra. Ironia, no bom sentido, para poucos mesmo. O que se quer dizer com “com cisco nos olhos”? Homem, não chora. Gaúcho, se é mais homem, chora menos ainda. Deixa-se surpreender com um cisco nos olhos. É bem diferente do que chorar. É bem diferente de simplesmente se dizer que chora. É outra maneira de dizer, é uma inscrição em uma outra cadeia de sentidos. É, pelo uso da metáfora, mais poético dizer assim. E por ser mais uma dessas letras de peão, tosco ao mesmo tempo que emotivo, já provoca um estranhamento temático, que é figura da obra poética e literária.

Nessa canção se explora a oposição entre felicidade e tristeza (redondinha para uma análise semiótica, talvez, mas que eu não vou fazer aqui). Mas quero chamar atenção para alguns versos especificamente. Quando se diz, por exemplo, “quando escuto as notícias da minha saudade”, esse verso evoca a frase corrente “quando escuto as notícias da cidade”, mas dizendo muito, muito mais. Tem aí uma aglutinação de sentidos, e o sentido de “saudade” fica mais complexo do que o sentido corrente na língua. É saudade com um sentido poético num determinado contexto; é saudade da cidade, mas não só da cidade, é saudade da terra, do amor que ficou; saudade que comprime o tempo e espaço fazendo o violão desafinar e a corda arrebentar. Depois, “é o pecado de haver endurecido o carinho / milongueando sozinho com o mate lavado”, este verso que evoca “resmungando sozinho com o mate lavado”. E o anterior, do “carinho endurecido” é o debate sutil com os sentidos estabelecidos, é justamente esse negócio de se olhar para o imaginário sobre o gaúcho, macho, tosco, insensível, e etc e propor outra coisa. Por isso eu digo que Mauro Moraes não simplesmente se ajoelha ao dogma do culto regional. Nem tampouco o critica. Ele faz, com isso tudo, sua arte, no sentido próprio de culto ao belo. Ou seja, ele parte desse imaginário, o que é ou o que deve ser o gaúcho, e faz uma discussão, mas em nível poético e metafórico. Se é verdade que o sofrimento é universal, que é o que de mais humano há e que nos torna mais humanos, também é válido dizer que se está “com cisco nos olhos” dentro dessa cultura. Importa é como se diz regionalmente o que pode caracterizar, em essência, toda a espécie humana; este deveria ser o conceito discursivo de cultura.

A última estrofe, sim, será a “sanção cognitiva”. Depois do verso “apesar dos pesares o que mais me machuca”, na penúltima estrofe, que é uma preparação, segue-se uma enumeração de versos começados por “é...” que vão ter como últimos e derradeiros versos aqueles em que se admite chorar no retorno da alegria vinda dos outros, ou do retorno dos outros que trazem consigo a alegria para o convívio: “é não ter vergonha de chorar quando se está feliz / com a alegria dos outros voltando pra si”.


Com cisco nos olhos


A                                                                                  E
Meu radinho de pilha toca de tudo, tudo o que eu acho bom
F#m
A lembrança de amigos nos discos
Bm                                                         E
O pago, enfim, tudo o que me faz feliz

A                                                        C#m
Ele é o culpado de todo esse amor
Bm                 (Bm/A)                   F#m (F#7)
Ele é o silêncio, meu convidado
D                   E           (E7)                   A           E
É o estado das coisas que a alma quer-se guardado

A
Não sei como um coração pleno em felicidade
E
Possa às vezes tornar-se um poço de tristeza
F#m
Quando escuto as notícias da minha saudade
Bm                                                        E
E o violão desafina, a corda arrebenta


A                                                          C#m
Apesar dos pesares o que mais me machuca
A                                                          C#m
É a distância de dentro que a gente retruca
D                                                          E
É o pecado de haver endurecido o carinho
Bm                   E           E7           A
Milongueando sozinho com o mate lavado

A                                                         C#m
É ficar em si mesmo proseando a toa
A                                                          C#m
Com a manada nos olhos da sua pessoa
D                                                          E
É não ter vergonha de chorar quando se está feliz
Bm/A                   E           E7           A
Com a alegria dos outros voltando pra si



Ah... escrever sobre essa música me deu até um negócio... Acho que me caiu um cisco nos olhos. Vou fechar a janela para interromper o minuano, e até a próxima.


Luis Felipe


P.S. O Mauro Moraes a que me refiro é o compositor gaúcho, não confundi-lo com seu xará, um político paranaense. Site oficial do artista: http://mauromoraes.com/


domingo, 17 de outubro de 2010

Sorria, você está sendo manipulado!

Quem gosta profundamente de música geralmente passa longe da televisão.

Existe uma discussão em torno da palavra “arte” que é muito antiga. Vem desde os gregos, pelo menos, a noção de belo, uma noção filosófica que é atribuída à natureza humana (isto é, embora cultural, afirma-se estar na natureza do homem), e que é a noção que nos leva a produzir e a consumir arte. A arte, em uma de suas definições mais antigas, é a materialização do belo através de diversos meios físicos (visual, sonoro, etc). A arte clássica ocupava-se, generalizando, de “imitar a natureza, embelezando-a”. Por isso herdamos aquelas esculturas da antiguidade clássica valorizando formas, propondo formas mais perfeitas que as da realidade. Quadros e esculturas tendiam a ser reproduções aperfeiçoadas da natureza.

Uma cisão que aconteceu na arte foi quanto a sua “aplicação”. Um dia alguém disse que a arte com um fim nela mesma era alienante, e que a arte devia servir à evolução (ou à revolução, mais especificamente). Temos, a partir disso, dois extremos para a “arte” consequentemente. Por um lado, a arte que não imita a natureza embelezando-a, mas justamente pelo contrário, questionando-a, a arte que pretende mostrar o equívoco, o erro, o feio, o anti-belo. E o outro extremo, a arte aplicada ao mundo do consumo, que ainda se serve, de certa forma, da referência ao belo, mas não com um fim em si mesma. As artes plásticas sempre foram os exemplos melhores para demonstrar isso, mas falemos de música que é o nosso chão.

A música clássica investia na harmonia “confortável”. Até a própria noção de harmonia se modificou com o surgimento da música moderna e com a aceitação da dissonância. A partir da cisão, portanto, da arte com fim em si mesma (a chamada “arte pela arte, nas diversas línguas), a música entrou nesse processo “evolutivo” atrasada em relação às demais artes, devido a questões técnicas, simplificando um pouco. Enquanto um artista plástico dava conta de realizar a sua obra e deixá-la para exibição permanente, a música, antes das tecnologias de gravação e reprodução, dependia de uma turma grande para acontecer: o compositor e/ou o maestro com uma formação muito aprofundada, vários músicos que integravam uma orquestra, ou até conjuntos consideravelmente menores, como grupos de câmara, além de um lugar apropriado pela sua acústica para a execução propriamente dita. Mas a música, para se realizar, dependia, a cada vez, de vários fatores para poder ser executada, enquanto os quadros e esculturas ficavam expostos e não dependiam mais do artista para ser apreciados.

Foram os países do Novo Mundo, e seus principais representantes, os Estados Unidos e o Brasil, entre outros, que desencadearam uma etapa na revolução da música no mundo ocidental. O colonialismo europeu nesses países evidenciou uma fissura social e de raça muito grande. Tinha-se, por um lado, os europeus com sua cultura branca, de religião cristã (protestante nas colônias inglesas e católica nas espanholas e portuguesas), que se impunha na relação colonizador-colonizado. Por outro, havia os habitantes nativos, os índios, e os escravos trazidos sobretudo do continente africano.

Na época do colonialismo índios e negros não eram considerados gente. Não existe revisionismo histórico que vá conseguir distorcer essa verdade. Com sorte, os índios da América do Sul podiam ser catequizados para deixar de ser pagãos e, talvez, quem sabe, conseguir um espaço no céu dos brancos. Índio bom (ou o bom selvagem) era o que abandonava Jaci e passava a cultuar o Deus branco. Os índios da América do Norte, por sua vez e falta de sorte, foram dizimados às pencas, tribos inteiras, e os intelectuais defendiam o extermínio dos selvagens nos tablóides locais. Sobraram os negros exilados dentro do país para o qual haviam sido trazidos como escravos e posteriormente libertos. Assim como no Brasil havia os negros alforriados e sem condições de se estabelecer economicamente, pois não herdavam terras. E foi justamente nesse conflito social e cultural que surgem, o que chamo aqui generalizando, as revolucionárias músicas afro-americanas que desencadearam nos estilos modernos: o jazz e o blues nos EUA, e o choro e o samba no Brasil, os ritmos caribenhos na América Central, e assim por diante.

Veja-se que dizer que havia um conflito cultural entre europeus brancos e ex-escravos implica dizer que estes tinham de fato uma cultura, e essa visão é na verdade bem recente. Na época do colonialismo não se considerava que tivessem cultura; e sua “cultura”, quando admitida, era considerada infinitamente inferior à cultura branca, europeia e cristã. Noções talvez até recentes na antropologia vieram conferir status de cultura legitimamente humana para estes seres outrora considerados inferiores. A partir de então, a cultura dos "selvagens" não era mais necessariamente inferior, mas "diferente".

Esse percurso histórico serve só para mostrar onde se dá, no mundo, a participação da música na história do rompimento da arte com seus objetivos “fúteis” que se tornaram “úteis”. A música mundial é revolucionada a partir dos continentes americanos, principalmente.

A rigor, alguns jazz chants mais antigos eram longas conversas improvisadas dos escravos nas plantações de algodão nos EUA, em combinações de fuga e às vezes até orações, cuja forma musical herdeira mais precisa são os negro spirituals. No Brasil, teve ainda a malandragem da capoeira, uma luta disfarçada em dança, além da conhecida história do casamento do fado português com o lundu africano, dando origem aos primeiros maxixes, avôs do samba original. Essa arte nova, a emergência da cultura negra como foi o caso dos EUA, ou da cultura miscigenada, como foi o caso do Brasil, confirmavam, por um lado, a definição clássica de arte na essência do humano e, por outro, conferia o status de humano para os até então não-humanos, os africanos e seus descendentes.

Nesse sentido, essas manifestações artísticas e musicais foram revolucionárias, pois nelas está o primeiro gene dos direitos humanos de igualdade modernos. Foi praticamente nas Américas, primeiramente, que a música deixa de ter um fim em si mesma ou existe somente para entreter a nobreza. Abreviando novamente a história para não ficar muito exaustivo, a cultura branca dominante, aos poucos, passa a incorporar a contribuição negra e as Américas se divorciam política, cultural e economicamente, dos países europeus colonizadores. O colonialismo foi uma “experiência” que deu errado, e que por isso deu certo.

A segunda parte dessa revolução na música se dá com o surgimento das tecnologias diversas, sendo cada uma delas responsável por uma parte da história evolutiva: o rádio que permitiu a veiculação do som à distância, a eletricidade que permitiu a criação dos equipamentos de som elétricos, a gravação do som em discos planos sulcados e sua reprodução via gramofones, etc. Claro, não posso deixar de mencionar a fábrica e a produção em larga escala tanto dos aparelhos de som quanto dos discos. Mais recentemente, no século passado, aparece a televisão na esteira das evoluções tecnológicas, veiculando não só o som, mas também a imagem.

Com isso tudo, já não se precisava do músico executando as músicas localmente e na hora. A questão tecnológica possibilita, aos poucos, o surgimento de uma indústria da música, e essa passa a se servir da noção de belo da arte com dois objetivos distintos: o primeiro, de criar uma cultura de consumo musical, o que seria ainda a música com um fim em si mesma, e uma parte da música que se especializa para ser “aplicada” à propaganda, a música que serve de veículo de promoção para o consumo de outros produtos que não a própria música. Na contemporaneidade, contudo, todas as artes são aplicadas ao mundo do consumo e perderam especificidade enquanto arte propriamente dita.

Uma questão perturbadora para os apreciadores de música é que justamente se perderam as fronteiras entre o jingle, a música feita para promover outas coisas que não ela mesma, e a música com o fim em si mesma, a música da “cultura de consumo musical”. Modernamente, pode-se dizer, a noção de belo já se virou do avesso umas trinta, quarenta vezes, foi jogada fora à revelia daquela antiga necessidade humana, e o que acaba se impondo a todo custo é a música com fins comerciais, numa análise superficial e generalizante, admito. Hoje em dia quase não se faz mais arte com fim em si mesma, tudo é feito para o consumo da massa, toda composição musical precisa ser jingle de si mesma.

Mas fica mais evidente essa falta de limites na televisão, porque são raros os programas de música que mostram o que não seja essa extremamente e estritamente comercial. Uma benção, entretanto, na televisão brasileira são os três programas que passam na TVE no domingo de manhã (e em outros horários): Viola, Minha Viola, com apresentação da legendária Inezita Barroso; o Sr. Brasil, com apresentação do carismático e multi-talentoso Rolando Boldrin, e um programa restrito ao Rio Grande do Sul, o Galpão Nativo, com apresentação do tradicionalista Glênio Fagundes, que recentemente passou a ser acompanhado por Maria Luiza Benites.

Quem pode assistir a esses três programas, depois de primeiramente aprender a distorcer o nariz para a música “dos outros”, porque ela no fundo não é uma ameaça nem para a sua música nem para a sua cultura, quem pode assisti-los faz uma verdadeira faculdade de história da música brasileira sem sair de casa. Até mesmo os conflitos regionais e sociais ganham novas explicações (menos conflituosas, às vezes mais), só pela própria história dos apresentadores.

Inezita Barroso, que apresenta o programa de música sertaneja do sudeste e do centro-oeste, para quem não sabe, foi provavelmente a primeira cantora de “músicas gauchescas”, escolhida por Barbosa Lessa e Paixão Cortes para gravar os primeiros cancioneiros folclóricos da cultura gaúcha (O Pezinho, Balaio, etc). O Rolando Boldrin é, talvez, a verdadeira enciclopédia da música urbana e rural do Brasil, e o Sr. Brasil presta a devida homenagem à música brasileira, mostrando, diversas vezes, como a música urbana moderna deve sua existência à música rural tradicional (ou sertaneja) e vice-versa.

O Galpão Nativo, comparado com os outros programas similares, que têm nome de churrascarias chiques em Porto Alegre, é muito melhor que os outros pela simplicidade e pela honestidade da proposta de mostrar a música gaúcha menos servil a interesses econômicos de emissoras reguladoras da cultura de consumo e do consumo de cultura. E Glênio Fagundes, cuja história de vida se confunde com a história do tradicionalismo gaúcho, é também a “ovelha negra” da família Fagundes, um dos poucos que não se vendeu ao sistema (Rede Brasil Sul...).

É muito curioso notar que as ações mercadológicas que investem no esquecimento da história e no apagamento da memória das artes são intimamente relacionáveis às indústrias de consumo. O que nos chega aos ouvidos pela televisão nem sempre é o melhor, ou o que faz mais sentido para a gente. Mas junto com essa cultura da arte massificada e pasteurizada vem toda uma enxurrada de discursos para nos convencer de que aquilo que estamos vendo e que temos que consumir imediatamente é o melhor. Quem conhece história das manifestações artísticas não deixa de consumir, mas consume mais conscientemente. E o perigo disso é que esses consumidores conhecedores da história e portanto mais conscientes talvez não consumam as obviedades do show business, os sucessos da hora. Que problemão! Já pensaram se todos começassem a se rebelar contra a manipulação da mídia? O que aconteceria é que o mercado teria que se submeter ao gosto e não o gosto se submeter ao mercado, como acontece. Com certeza seria melhor.

Um paradoxo da contemporaneidade é justamente esse: a música aparentemente fútil, isto é, aquela sem uma finalidade precisamente comercial, a música feita somente para o culto ao belo, ou ao anti-belo, talvez, mas que não se submete às regras da cultura de massa facilmente comercializável, essa que é atualmente a arte mais engajada. E que, por tudo isso, dificilmente aparece na tevê. Mas eu não vou dizer o que é uma coisa ou outra, porque isso seria meramente uma questão de opinião...


Até a próxima!

Luis Felipe


P. S. O crédito da imagem é do blog de Malu Kiss, um site que tem várias fotos de coisas antigas e até trilha sonora para quem visita: http://malukissbenevides.blogspot.com/2010/07/tv-antigas.html

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Não repare a letra, a letra é de minha mulher...


Há uma frase dita por Holden Caufield, protagonista e narrador em 1ª pessoa do Apanhador no Campo de Centeio, do esquivo, há pouco falecido e há muito consagrado escritor americano J. D. Salinger, com a qual ando me identificando muito ultimamente: Sou quase um analfabeto, mas leio bastante (no original “I'm quite illiterate, but I read a lot”). Claro, algum tradutor melhor que eu poderá discordar da minha tradução e propor, corrigindo-me, que “illiterate” seria melhor traduzido como “iletrado”. Eu também não discordaria de quem discordasse de mim, pois nem sempre eu concordo comigo mesmo. Enfim. A questão, por outro lado, que eu proponho é do sentido tanto de analfabeto quanto de iletrado. O que é um e o que é outro?

A diferença entre iletrado e analfabeto não é tão clara. E vão-se longas décadas que tínhamos altos índices de analfabetismo, pessoas que não tinham qualquer contato com a palavra escrita. Se antigamente tínhamos uma divisão bastante precisa da sociedade entre os que tinham cultura letrada e os que não sabiam ler nada, hoje arrisco dizer, numa crítica social tão irresponsável quanto sem compromisso, que temos poucos analfabetos, mas muitos iletrados, mesmo entre os que leem.

Nessa contradição de Caufield, o que não é meu caso, pois no meu caso ainda pode ser verdade, como definir um sujeito que se diz quase analfabeto ou iletrado, mas que lê bastante? O estranho personagem do Apanhador no Campo de Centeio ia mal na escola, sim, mas suas melhores notas eram em inglês (língua materna), justamente porque escrevia bem e era até reconhecido pelos colegas por isso. Tem até uma situação em que ele se irrita porque um colega mala pede-lhe que faça sua “composition” e o elogio, a moeda de convencimento, é que ele “sabe colocar as vírgulas”, como se saber escrever tivesse a ver somente com a pontuação. O que queria dizer Holden Caufield com aquilo de ser "quite illiterate"? Mais adiante, o que quereria dizer Salinger com aquilo? O quanto de Salinger tinha Caufield? Porque, convenhamos, sempre que um narrador fala sobre escrever a gente já tende a ver o próprio escritor falando como se aquele fosse alter-ego deste.

Mas para chegar onde eu queria, e eu queria falar de Adoniran Barbosa, quero fazer ainda uma rápida digressão, sobre Tiririca. Personagem caricato das eleições desse ano no Brasil, provocou revolta em muitas pessoas por ser, sendo um personagem palhaço, campeão de votos para o Congresso Nacional no maior colégio eleitoral do país, o estado de São Paulo. Acho cedo para esses julgamentos que se ouviram bastante, tipo – “quem votou nele estava tirando sarro da situação política”; ou “os paulistas demonstraram ser pouco politizados elegendo-o”, e etc. Naturalmente que Francisco Everardo Oliveira Silva cria uma expectativa tosca, pois o personagem Tiririca é um completo ignorante que não sabe nem falar direito. Ele fala “pusquê” no lugar de “porque” (ou ele diz “pois que”?) que não sei se é variante em qualquer região do Brasil. Talvez ele nos surpreenda com algum desempenho positivo ante os demais eleitos. Se, por exemplo, ele conseguir falar “porque”, com qualquer som de /r/ já vai nos surpreender a todos. Não se sabe nada desse homem, exceto que já trabalhou com o seu personagem nas principais emissoras de televisão de país, o que não é critério de competência intelectual... Mas minha opinião é que não dá pra dizer nem que ele tem capacidade para ser legislador, nem que não tem, permanecendo uma perfeita incógnita até os dias que se seguirem a posse. A única certeza é que o sujeito de direito, o que foi eleito, e seu personagem, o que recebeu os votos, não são necessariamente a mesma pessoa.

Mas e o Adoniran com isso? E o Holden Caufield? E pra piorar tudo, o Tiririca? Não há semelhanças. Mas talvez haja coincidências. Adoniran Barbosa era personagem do comediante e compositor João Rubinato, um personagem tido por “ignorante”, que “falava errado”, mas que, até onde se sabe, nunca se candidatou a cargo eletivo, o que é bom porque não lhe estragou a bela carreira (já no caso do Tiririca talvez não estrague nada, porque o humor do “abestado” é sofrível...). Era uma constante nas letras de Adoniran Barbosa o eu-lírico acusar-se de ser analfabeto. Diferentemente, entretanto, de Caufield, ele nunca foi criador de uma frase de efeito sobre o assunto. Mas dizia, nas entrelinhas de algumas de suas composições, que era um analfabeto que escrevia, contraditoriamente. Eu sempre me divirto muito com Vide Verso Meu Endereço, principalmente no trecho em que ele diz - "não repare a letra, a letra é de minha mulher". Ora, digam-me, por favor, qual analfabeto nesse mundo teria noção estética da caligrafia?

Além disso, pensando no sentido geral, a letra dessa canção transcende os gêneros (bilhete, carta, letra de música, texto narrado para outro escrever, etc) por qualquer ângulo que se olhe. Tem um excesso de informação metalinguística (informação sobre como se está dizendo quando se está dizendo) que o torna impreciso demais para ser um só gênero. O narrador primeiro diz que está entregando um bilhete, e a reprodução da cena se dá pela fala do narrador entregando o bilhete diretamente ao Seu Gervásio, o intermediário, que deverá entregar o bilhete ao Doutor José Aparecido, o destinatário. Quando começa a cantar (e quem canta é o Seu Gervásio? Ou o próprio Adoniran?), a primeira linha cantada diz “venho por meio dessas mal-traçadas linhas”, isto faz uma referência ao gênero carta, porque se supõe, quando essas eram escritas, que fossem mais formais do que um bilhete. E já na linha seguinte ele emenda “comunicar-lhe que fiz um samba pra você”. Ao mesmo tempo que é carta ou bilhete, é o próprio samba cantado pelo narrador, colocando-se este, em primeira análise, na situação de “autor” do texto. E além de ser cantado como se fosse o texto lido (da carta ou do bilhete), também parece ser uma fala feita de improviso. Por exemplo, quando diz “tinha mais coisas pra lhe contar/ mas vou deixar pra uma outra ocasião”, a palavra “ocasião” provavelmente se refere mais a uma situação de fala, do que a uma situação de escrita (senão ele diria “vou deixar para a próxima carta” ou “para o próximo bilhete”). Dizer que há “marcas da oralidade” ou "hipercorreção" num texto tão elaborado são explicações superficiais, ver-se-á adiante. Ou seja, é evidente que tem marcas de oralidade, e entre elas a hipercorreção na escrita, mas jamais é suficiente num letra como essa esse tipo de interpretação. Há muito mais que isso.

Uma hipótese fraca para explicação da justificativa ao final da letra ("não repare a letra, a letra é de minha mulher") é o da não-contradição, isto é, supor que o “autor” teria efetivamente ditado a carta para a sua mulher e que esta dera grafia ao que ele ditara. Mas será que ela aceitaria escrever, de próprio punho, que sua letra era “mal-traçada” aos olhos de um analfabeto? E alguém ditando isso pareceria mais absurdo que a contradição entre o dito e acontecido, que nesse caso é muito evidente. Aceitar que a mulher escreveu o que ele ditava é certamente mais improvável do que supor, nesse pequeno trecho, que o próprio autor, embora diga que a escrita é de sua mulher, envergonhasse-se de sua letra feia e jogasse essa culpa na esposa. Mas isso também não explica tudo, porque ainda há a falta de definição entre ser bilhete ou carta e samba cantado.

A rigor, o efeito provocado é esse em que, analisando de perto, se sobressai a falta a definição de um gênero específico; a forma imprecisa deixa até a relação entre forma e conteúdo em suspenso. O que é isso, afinal? Não se pode definir se o todo da letra de Vide Verso Meu Endereço é, a uma só vez, bilhete, carta ditada, letra de samba ou conversa de botequim:


Vide Verso Meu Endereço


"Seu Gervásio...
Se o Dr. José Aparecido aparecer por aqui
O senhor dá esse bilhete a ele
Pode lê, num tem segredo nenhum
Pode lê, Seu Gervásio"

Venho por meio destas mal-traçadas linhas
Comunicar-lhe que eu fiz um samba pra você
No qual eu quero expressar toda a minha gratidão
E agradecer de coração
Por tudo que você me fez
Com o dinheiro que um dia você me deu
Comprei uma cadeira lá na praça da bandeira
Ali vou me defendendo
Pegando firme dá pra tirar mais de mil por mês
Casei, comprei uma casinha lá no Ermelindo
Tenho três filhos lindos
Dois são meus, um é de criação
Eu tinha mais coisas pra lhe contar
Mas vou deixar pra uma outra ocasião
Não repare a letra
A letra é de minha mulher
Vide verso meu endereço
Apareça quando quiser


A questão agora é a seguinte - a malandragem dessa letra se deve à falta de capacidade de seu autor de precisar um gênero para “passar a mensagem” ou é proposital? Eu não acho essa pergunta difícil e, pelo menos para mim, a resposta é óbvia. Lembrem que Adoniran Barbosa era personagem humorístico de rádio, e fazer com que o personagem parecesse sofrer de uma grave esquizofrenia linguística, por não saber diferenciar entre bilhete, carta ditada, letra de samba e diálogo oral, teria custado ao autor não só ter uma noção bem precisa dessas coisas, mas também saber como poder transgredir seus limites sutilmente. E João Rubinato, o criador própriamente dito do personagem-compositor Adoniran Barbosa, talvez fosse mesmo meio iletrado, vide sua biografia, mas era capaz de fazer uma letra como Vide Verso Meu Endereço, para um personagem como Adoniran (que precedeu ninguém menos que Chico Buarque de Holanda nas letras de cunho social em que o eu-lírico se assume a partir de lugares sociais desprestigiados). Ser capaz de fazer tudo isso intuitivamente é algo que só é destinado aos gênios.

Eu gostaria de ser tão iletrado quando Holden Caufield. Quero ser metade do ignorante que era o Adoniran Barbosa. Eu, com toda a minha formação acadêmica, em progresso, jamais escrevi nem compus nada que prestasse. Quem será meu personagem? Ou quem será meu autor?


Até a próxima!


Luis Felipe

terça-feira, 12 de outubro de 2010

O bom da música brasileira: uma opção entre tantas

Acho importante falar da cultura brasileira a partir do ponto de vista do músico. A música brasileira é parte da cultura. Ambas, cultura geral e música, pelo senso comum, são massacradas por opiniões nada indulgentes mas absolutamente auto-depreciativas. E digo isso porque quem critica a cultura brasileira e também a música brasileira, generalizando, são brasileiros. Brasileiro bom é o que diz que é ruim ser brasileiro, e que o ideal seria ter nascido na Europa (ocidental, grife-se, sendo Portugal o país com pontuação menor) ou nos Estados Unidos, as nossas pátrias "encantadas", como a Pasárgada para Manuel Bandeira. Claro, com a diferença que os países da Europa ocidental e os EUA existem no mundo real (mas seus cidadãos nativos não necessariamente se auto-depreciam como nós...).

Para dar um exemplo mais ou menos claro do que estou falando, quando falo de auto-depreciação, lembro sempre de uma amiga de um amigo, muito bonitinha e inteligente, mas que quando voltou de uma temporada na Inglaterra, queixava-se que “no Brasil só se escuta música ruim”; e argumentava que foi no país da rainha que um inglês apresentou para ela “a boa música brasileira” - Sérgio Mendes, Tom Jobim, Edu Lobo, para mencionar alguns dos que eu lembro ela ter citado. Mas, opa! Espera aí um pouquinho... eu pensei. Por que ela precisou ir para a Inglaterra para conhecer essas coisas?

A minha conclusão, na época, eu que já conhecia tudo o que ela havia citado, e muito mais, foi taxativa: as pessoas se deixam educar pela televisão, talvez por um único canal, então o input musical vai ser exatamente aquele que o programa de auditório do domingo à tarde escolher. Os sucessos do momento. O sucesso dos artistas que estiverem no momento do sucesso. Porque essa indústria do entretenimento, como toda indústria que só visa o lucro, e raramente a qualidade daquilo que produz, precisa tornar tudo descartável o quanto antes para lançar a novidade da hora. Por isso que até os nossos artistas se tornam descartáveis, salvo um bom punhado de semi-deuses que chegaram ao Olimpo da música brasileira, e estão acima do mercado dos mortais.

Para se conhecer a realidade da própria cultura, inclusive suas coisas boas, é imperativo às vezes ignorar a mídia e o mercado, sair desse dependência “intelectual”. Mídia e mercado são movidos por interesses muito específicos. Não estou dizendo que seja necessário fechar-se ao mundo midiático e sair pirateando filmes e CDs, os que ninguém assiste e escuta, respectivamente. Pelo contrário. Eu não pirateio nada. Compro tudo autêntico do mercado legal e exijo nota fiscal. Juro. E também procuro estar inteirado de alguns lançamentos que tocam no rádio. O que estou dizendo é que talvez a gente tenha que ter uma mentalidade mais própria, independente da mídia e do mercado, para poder conhecer as coisas boas que são feitas aqui. Eu acompanho a mídia segundo meus interesses. Eu compro do mercado o que é do meu gosto, e meu gosto musical não foi jamais determinado pela mídia. Mídia e mercado estão a meu serviço. Nunca o contrário. Ah, mas o meu gosto não é o mesmo da maioria, e por isso algumas coisas são menos acessíveis... Bom, isso é outra discussão. Nem sempre o que é melhor e o que é mais acessível são a mesma coisa. A gente faz as nossas escolhas e convive com elas...

Não vou reclamar da onda de artistas estrangeiros, principalmente e sobretudo do pop americano que invadem nossas rádios e prateleiras de lojas de CDs. Tem bastante coisa daí que eu escuto, aprovo e recomendo. Mas posso questionar, isso sim, por que acontece com muita gente como aconteceu àquela menina, quem escuta aqui tudo o que está na “moda” (leia-se promovido pela mídia para fomentar o mercado dos artistas efêmeros), para num belo dia em viagem pelo velho continente, meio que por acaso, no meio dos galanteios de um gringo espertalhão, acabar conhecendo os grandes compositores do próprio país de origem. Isto é no mínimo muito estranho. Dar-se a conhecer só o que está nas paradas top ten de sucessos e depois reclamar que o que se oferece aí não é satisfatório. Verdade seja dita, quem quer conhecer alguma coisa, rompendo a superficialidade do senso comum, tem que se levantar e ir atrás. A passividade não ergue nem um castelo de areia, nem de cartas, e muito menos um prédio de verdade.

Estou relendo o Chega de Saudade, A história e as histórias da Bossa Nova, do Ruy Castro. Li pela primeira vez há uns dez anos o livro que era de uma biblioteca. Depois quis ter o meu e não o encontrei. Fiquei um tempo procurando, mas sem muito sucesso, e acabei esquecendo. Encontrei-o por acaso, dia desses, numa livraria. Não tive dúvida, saquei-do da prateleira e está aqui, para releitura e constantes checagens de referências.

Cito esse livro no meio dessa postagem porque comecei o texto pensando em falar justamente dele. Junto com outras obras bibliográficas sobre música brasileira, esse dá um panorama bem abrangente de um período, de um estilo que se impôs ao mundo pela sua qualidade. Até hoje quem acompanha as novelas de Manoel Carlos na Rede Globo, caso alguém não saiba, as músicas que você provavelmente acha mais legais são de Bossa Nova, muitas vezes. É uma excelente opção para quem quer começar a se aprofundar na boa música brasileira ao invés de ficar reclamando das "mais tocadas" nas "paradas de sucesso".

Falando em música brasileira de qualidade, além daqueles compositores consagrados da Bossa Nova, temos ainda os herdeiros da música brasileira autêntica, e chamo autêntica porque eles sempre criativamente a renovam. Compositores como Lenine, Marcelo Camello, Ana Carolina, Cássia Eller, Paulinho Moska, Celso Fonseca, Zeca Baleiro, Ed Motta, entre tantos inúmeros outros que não caberá citar aqui, em suas variedades de estilo e originalidade relativa, colocam a música brasileira no patamar das mais ricas produções musicais do mundo. E é tudo daqui, do Brasil mesmo, de perto de você, talvez, e que além da música temática da novela (que, exaustivamente repetida, a gente enjoa dela) esses compositores têm uma obra vasta e riquíssima. Não acredita? Pergunte a algum estrangeiro que entenda bastante de música na próxima vez que você se for viajar para longe, para conseguir ver seu país com outros olhos, que não aqueles míopes do senso comum que só enxergam a si de modo distorcido por causa das lentes da ignobilidade que se acha nobre...


Até a próxima!

Luis Felipe


P.S. O Chega de Saudade, A história e as histórias da Bossa Nova, do jornalista Ruy Castro, pela Companhia de Bolso, custa menos de R$ 30, dependendo da livraria, e vale muito a pena. Como diria o Tim Maia Racional, “leia o livro”.

domingo, 10 de outubro de 2010

Resposta ao tempo - adendo. Ou: a emenda pior que o soneto, quem sabe.

Parece que ficou meio no ar essa questão de que em Resposta ao tempo, na postagem anterior, o poeta opusesse tempo e linguagem. Vou tentar explicar melhor, mesmo assim ainda correndo o risco de não esclarecer nada. Valerá a tentativa de explicação. Ou não.

O tempo não está no mesmo nível que nós estamos, para começo de conversa. Não há diálogo possível com o tempo. O tempo passa e não nos pergunta o que a gente acha. Entretanto, cabe lembrar que é característica do ser humano a linguagem elaborada, o diálogo, e até mesmo a divergência (que está dentro desse sentido de diálogo que eu uso). Se alguém vai discordar de mim, pode argumentar no mesmo meio, a língua. Se a gente discordar do tempo, azar o nosso.

Lembro que há algum tempo, quando concluía um curso de especialização na área da linguagem, um tema que pensei em discutir seria a tentativa de dialogização do não-dialógico. Explico. A natureza (isso aí mesmo, mato, biodiversidade, equilíbrio ecológico, e etc) é natural, apesar do que vai parecer redundante. Uma parte significativa da nossa vivência é cultural, e é expressa na linguagem, portanto dialógica. A natureza não dialoga, ela não está nesse nível cultural nem dialógico. O que eu tinha pensado em fazer como trabalho era justamente coletar alguns slogans de propagandas da Secretaria do Meio Ambiente de Caxias do Sul, na época, que expressavam tentativas de supor que a natureza dialogava com a sociedade humana. Um slogan, se me recordo razoavelmente bem, dizia assim: “a natureza está respondendo aos constantes ataques....”. E isso fazia referência direta a catástrofes naturais, cuja hipótese bastante provável de causa é a própria ação humana sobre a natureza.

O que acontece é que a natureza, a rigor, não “dá recado” pra ninguém e não vai prevenir ninguém de nada nunca. Tudo isso é bobagem, na verdade. Mas não deixa de ser verdade que a ação do homem sobre a natureza tem efeitos, por vezes catastróficos. Eu acredito nisso. Mas o que estou defendendo é que não tem diálogo com a natureza. A natureza simplesmente é, tem suas próprias regras, considera a vida de todos os seres igualmente (e nesse sentido o ser humano não é melhor nem pior, talvez um pouco pior porque a danifica mais, enfim, mas não é jamais superior e nem vai ser avisado de nada). A natureza, portanto, não está “dando avisos” quando acontece uma catástrofe natural. O que é natural na natureza não tem “intenção” de comunicar, como de um suposto ser dando um aviso, mas pode ter “causa”. Intenção e causa são coisas bem diferentes.

Partindo dessa ideia de dialogar com o que não está no nível do diálogo, penso que nós humanos tendemos a horizontalizar tudo, colocar tudo no nosso nível humano, o dialógico. Conversar com os animais de estimação é básico (e incontestável). Mas também estabelecemos contato verbal com o além, com o extraterrestre, com a natureza, com o divino e o sagrado, e até com o tempo. Com o tempo, nos dois sentidos, inclusive. O tempo/clima, a gente "pede para São Pedro” que chova ou faça sol. Já vi até gente xingando as nuvens, tadinhas, que fossem passear em outros céus. O tempo cronológico, quem você pensa que é o interlocutor quando alguém reclama que o tempo parece passar ou não na velocidade que se queria? Talvez nos sentimos mais localizados no mundo e na vida quando dialogamos com tudo ao nosso redor. O ser humano é um animal dialógico. Os animais de estimação, evidentemente, adquirem uns traços nossos, de alguma forma se comunicam conosco. Só não falam a nossa língua (alguém discordaria...).

Foi nesse sentido que quis dizer que em algum lugar da letra de Resposta ao tempo subjazia a ideia da linguagem se opor a tempo, e isso já estaria aí no próprio título da canção, na palavra “resposta”. Como se fosse possível responder ao que não é dialógico, e mais ousadamente ainda, estabelecer um diálogo com o tempo, ainda que fictício. Por isso uma questão de linguagem contrapondo-se a tempo...

Acho que depois dessa postagem, que procura consertar uma postagem que teve um argumento muitíssimo ou extremamente vago, vou tentar evitar os assuntos metafísicos, porque parece que nem eu me entendo comigo mesmo. Mas estando sempre aberto ao diálogo...

Até a próxima.

Luis Felipe

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Resposta ao tempo

Imagine que você resolvesse discordar do tempo. Como assim, discordar do tempo? Assim. Discordar do tempo. Não estou falando de algo como “arrumar o relógio errado”, para discordar do tempo. Chegar na cara do tempo e dar uma moral... Opa, mas ninguém te disse que o tempo tem uma cara? Muito menos que o tempo conversa? Nas mitologias antigas poderia ter, o que seria o caso de Chronos, o grego, e Saturno, o romano, os deuses clássicos do tempo. Porque as mitologias já foram visões de mundo bastante levadas a sério para dar conta de explicar as coisas naturais, ou simplesmente de admitir a existência de coisas incompreensíveis em sua natureza.

Em toda a sua grandeza física, o tempo, em termos absolutos, passa; e nós fenecemos. O tempo não perdoa nada nem ninguém. Em sua dimensão metafísica e filosófica, o tempo se torna juiz e executor de diversas penas e graças, tanto para punição como para redenção, respectivamente. Há muitos ditados populares sobre o tempo, muitos deles sábios, inclusive. “O tempo tudo cura”. “O tempo mostra a verdade”. O tempo isso e o tempo aquilo. Até aquele “água mole em pedra dura tanto bate até que fura” é um ditado que fala sobre o tempo, no fundo, e não sobre água e muito menos sobre pedra. Explicitando o sentido, o ditado aí diz que os efeitos da erosão são só uma questão de tempo. O tempo é tudo e tudo é uma questão de tempo.

Dividimos o tempo. Calculamos o tempo. Contamos o tempo. Em algumas situações, esperamos o tempo passar. Em outras ocasiões, torcemos para que o tempo não passe. Pouca gente sã ousaria dizer que resolveu, assim como quem diz que resolveu encarar o chefe e pedir um aumento, dizer que chamou o tempo no lero-lero, que resolveu bater um papo sério com o tempo. Coisa de louco isso seria. Mas ainda bem que temos, na herança de uma tradição que vem desde as mitologias, passando pelo ditirambo e várias outra coisas, a poesia e a canção. E exatamente aí, no fazer poético que não deve satisfação ao mundo como ele é, ou como a maioria de nós acha que ele é, que o poeta, em sua inspiração e graça, põe-se a dialogar com o tempo.

A música Resposta ao Tempo é uma composição de Cristovão Bastos com letra de Aldir Blanc. Eu só conheço essa canção cantada pela Nana Caymmi. Podem haver outras, mas isso não vem ao caso agora. Deixemos isso para outro tempo. A idéia geral dessa canção, à primeira vista, é bem essa mesma: o eu-lírico, que se apaixona e não vê o sentimento passar, tal qual faz o tempo, chama-o para confrontar-se ele, o eu-lírico, que não passa, com ele, o tempo, que passa e apaga tudo:


Resposta ao Tempo

Batidas na porta da frente, é o tempo
Eu bebo um pouquinho pra ter o argumento

Mas fico sem jeito, calado, ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar e eu não sei

Num dia azul de verão sinto o vento
Há folhas no meu coração, é o tempo

Recordo um amor que perdi, ele ri
Diz que somos iguais, se eu notei
Pois não sabe ficar, e eu também não sei

E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro sozinhos

Respondo que ele aprisiona, eu liberto
Que ele adormece as paixões, eu desperto

E o tempo se rói com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor pra tentar reviver

No fundo é uma eterna criança

Que não soube amadurecer

Eu posso, ele não vai poder me esquecer


Claro, toda letra interessante tem, via de regra, algum aspecto intrigante que talvez nem tenha sido pensado pelo seu autor. Isso pertence a quem lê e interpreta, muitas vezes. Nesse diálogo com o tempo pode ser, em princípio, o ainda convencionado chamar o eu do poema de eu-lírico. Até alguns dos primeiros versos tudo bem. O eu-lírico é alguém que se apaixona, não deixa que o sentimento passe, ao passo que o tempo passa e apaga... apaga a memória, apaga a história, etc.

Há três momentos na música. O primeiro, em que o tempo ganha a disputa (“porque sabe passar, e eu não sei”). O segundo em que eu-lírico e tempo se igualam, pois o primeiro até perdeu um amor que recorda e, como o tempo, “não sabe ficar, e eu também não sei”. E, por fim, o terceiro momento, em que o eu-lírico dá um nó argumentativo no tempo e anuncia sua vitória por empate, mais o surrender do tempo, em relação ao fazer poético. Opa! O que eu disse?

Muito cuidado nessa hora, principalmente porque o argumento aqui é complicado, e o sentido a se produzir é frágil e delicado. Deu-se a passagem do eu-lírico, personagem que dá voz ao poema, à voz própria do poeta. A questão intrigante é, naquela estrofe que diz – “respondo que ele aprisiona, eu liberto / que ele adormece as paixões, eu desperto” – perguntamo-nos o que ou quem afinal é o “eu”? Na impossibilidade de ser poeta e eu lírico ao mesmo tempo (e isso é uma loooonga discussão), acho que é necessário anunciar simplesmente pela via interpretativa que segue que o eu-lírico cede espaço ao poeta; não necessariamente ao poeta, com endereço e CPF, mas o poeta mítico do fazer poético. E o poeta se anuncia no eu-lírico. E não é mais que o tempo seja tudo e que tudo seja uma questão de tempo, mas de linguagem. Porque o poeta constrói na linguagem. O tempo e tudo mais, o que se sente, o que se descreve, o que se supõe, tudo está na linguagem. E tudo isso pode, ou deve, virar poesia.

Senão, o que desperta as paixões mais do que a própria poesia? Não tenho dúvida disso. Não basta haver uma pessoa que nos encante e por quem nosso coração bata mais forte. O sentimento que for, uma vez que seja típico do humano, precisa ser feito em linguagem, para se tornar vivo e visível e verdadeiro. Desde a crença até a ciência, na humanidade, só existe o que é narrado, só pode existir o que pode ser narrado.

E aí, nessa Resposta ao Tempo, está a nossa suposta “superioridade” da poesia, da linguagem, em relação ao tempo. O tempo passa, a poesia fica. O que atrapalha é justamente a inconsistência da memória, sujeita ao erro humano, que desafia até a lógica do tempo e a (in)constância da linguagem, como es mejor el verso aquel que no podemos recordar...



Até a próxima!

Luis Felipe


P.S. O verso em espanhol é da canção Vete de Mi, dos compositores Homero Aldo Exposito e Virgilio Hugo Exposito, uma faixa do CD Fina Estampa, de Caetano Veloso.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

As mulheres na música: Dolores Duran

Depois de alguns textos que evidenciam um certo conservadorismo patriarcalista, pela própria omissão do fato de que a música feita por homens é música feita por homens, e não toda a música, depois desses dois textos, principalmente, um em que musa vira mulher e mulher vira musa (À musa da música) e outro em que a mulher é objeto de disputa (Disputa-se uma mulher), já passamos da hora de colocar a mulher no papel de protagonista da composição musical.

As mulheres da música, se me permitem fazer uma diferenciação, são as ditas musas. Mas dessa vez quero falar das mulheres na música, isto é, as mulheres que fazem música. Há que se estabelecer, de saída, outra diferenciação entre as chamadas “divas da música”, uma designação carinhosa para as intérpretes (cantoras) e as compositoras propriamente ditas. A mulher compositora, visto essa condição patriarcal que custamos a superar, é sempre uma revolucionária.

Tivemos, sim, Chiquinha Gonzaga. Tivemos, mais tarde, Nara Leão. Temos atualmente Ana Carolina. Entre muitas outras sobre as quais não vou me estender. Mas é reconhecível que, mesmo que elas sejam muitas, quando colocadas em lado e proporcionalmente aos homens, mulheres compositoras são exceções. Por alguma razão não declarada, há muito mais homens compositores do que mulheres. Eu não sei o porquê disso e nem vou arriscar interpretações sobre tal dado da realidade. Só posso dizer que, diferente da política, onde precisa haver uma regulação para que os partidos tenham uma quantidade proporcional de mulheres e homens, a produção artística não se sujeita a esse tipo de regulação. A produção artística é o terreno da liberdade e da criação. Enfia-se nesse meio quem quer, e não há restrições assim como não há exigências.

Não estou dizendo que, por não haver restrições seja “fácil” de se entrar ou de se manter nesse meio. Eu não disse isso. São coisas bem diferentes. Mas digo que a música popular é um espaço onde qualquer um com alguma voz, um instrumento, talvez até menos que isso, pode se colocar e arriscar uma carreira.

A musa da vez, que não é musa, mas é compositora, e por ter sido compositora tornou-se musa, num certo sentido (e também cantava), a quem dedico essa postagem, é Dolores Duran.

Para os que curtem essa coisa de artista extremado que vive loucamente e morre jovem (cujos exemplares sempre citados na cultura brasileira americanizada são Janis Joplin, que morreu aos 27, Jimi Hendrix, também aos 27 e Jim Morrison, 28), Dolores Duran já foi revolucionária por se adiantar aos americanos em cerca de duas décadas nesse rito de viver intensamente para se tornar mito. Claro, antes de todos vieram os poetas românticos do século XIX, mas o assunto aqui é música. Dolores Duran morreu aos 29 anos de idade em 1959. Apesar de ter problemas de coração, fumava cerca de três carteiras de cigarro por dia e bebia, segundo Ruy Castro, em seu livro Chega de Saudade, “como se a reserva alcoólica do planeta fosse acabar no dia seguinte". E amou. E sofreu.

Dolores Duran, cujo nome era Adiléia Silva da Rocha, em sua breve passagem pelo universo que ficou conhecido como o movimento Bossa Nova na década de 1950 no Rio de Janeiro, conseguiu, apesar da origem mais ou menos humilde, com sua musicalidade e capacidade para cantar em várias línguas, impressionar o próprio diplomata e poeta Vinícius de Moraes, que acabou lhe cedendo o parceiro Tom Jobim para que ela fizesse a letra de Por Causa de Você, uma das mais lindas canções co cancioneiro jobiniano, que foi gravada em inglês por Frank Sinatra, traduzida como Don't Ever Go Away.

A parceria de Tom Jobim com Dolores Duran rendeu peças musicais preciosas. Mas como este texto se propõe a falar de música feita por mulheres, Dolores Duran é uma boa escolha e a visita de Tom, Vinícius e Frank termina aqui mesmo. Claro, poderia falar de várias outras, com Maysa, Sylvinha Telles, Nara Leão, acima citada, ih... cada uma delas mereceria não só uma postagem de um blog, mas um blog inteiro. Uma vida inteira para pesquisar a riqueza de suas obras.

Mas escolhi Dolores para começar. Acho que fiz essa escolha porque tem coisas muito marcantes em sua obra. A troca de Adileia pelo nome Dolores, por exemplo, para tornar-se conhecida como uma compositora que cantava as suas dores, que transformava em música esse quê inapreensível, esse lado intangível – e doloroso – da vida, revela um traço de genialidade poética. Isso de fazer fundir vida e obra, coisas geralmente tão separadas, é algo de quem não entendeu bem a vida na sua mediocridade cotidiana, mas viveu genialmente a poesia, viveu o drama, viveu a tragédia da existência humana.

É coisa de poeta em sentido extremado, não é o poeta hesitante que “finge que é dor a dor que deveras sente”, citando Pessoa. Não sei dizer poeticamente, mas acho que é diferente. É um poeta que se entrega e sucumbe ao excesso, que traz consigo todos os sentimentos do mundo, parafraseando Drummond (ó os homens aí de novo... tenho que ler mais poesia de mulheres, para aumentar meu repertório). Só o que eu queria dizer é que uma das maiores expoentes desse tipo de artista, na música brasileira, é Dolores Duran.


Castigo (Dolores Duran)


A7+ Bm7

A gente briga

D/E E7 C#m7

Diz tanta coisa que não quer dizer

F#m7 Bm7

Briga pensando que não vai sofrer

E7 A7+

Que não faz mal se tudo terminar

A#° Bm7 E7 C#m7

Um belo dia a gente entende que ficou sozinha

F#m7 Bm7

Vem a vontade de chorar baixinho

E7 A7+

Vem o desejo triste de voltar

A#° Bm7

Você se lembra

E7 C#m7

Foi isso mesmo que se deu comigo

F#m7 Bm7

Eu tive orgulho e tenho por castigo

E7 G/A A7

A vida inteira pra me arrepender

D#7/5- Dm7 C#m7

Se eu soubesse naquele dia o que sei agora

Cm7 Bm7

Eu não seria essa mulher que chora

E7 A7+

Eu não teria perdido você


Até a próxima!

Luis Felipe


P.S. Uma dica para quem não conhece a música e quer conhecer, é o CD Amores e Boleros 2, da intérprete Tania Alves (aquela mesma que também é atriz). A versão de Tania Alves é mais contemporânea do que a original da Dolores, mas é difícil de encontrar (minha mãe tem esse CD, hehe). Link para Dolores no youtube:http://www.youtube.com/watch?v=IreFEnvyc1o&feature=player_embedded

sábado, 2 de outubro de 2010

À musa da música

Lenine é genial.

É recorrente entre os apreciadores de música a ideia de que a criação é motivada por um acontecimento ou um ente (um ser). O ente, mais conhecido como musa desde os tempos das epopeias clássicas, transformou-se modernamente na figura de uma mulher. Isto é, com o tempo, as musas deixaram de ser deusas-ninfas, um artigo de mitologia, para se tornar gente de verdade. E mesmo como gente de verdade servindo de musas, ainda cabe a ressalva – podem ser reais ou imaginárias. Porque há musas, mulheres reais, que por vezes inspiraram os poetas e compositores, bem como há compositores que têm inspiração (ou tem “musa”) mas ela não é uma pessoa de carne e osso. Não é nem necessariamente uma mulher. Nem necessariamente homem, tampouco. É só pura inspiração mesmo, o que motiva a criação para compor a canção.

O ótimo João Donato, no documentário Coisa Mais Linda, do cineasta Paulo Thiago, fala que “atrás de uma boa música sempre tem uma boa mulher”, e mostra uma valsinha que compôs na infância para sua primeira paixão. Eu, compondo minhas humildes polcas, tive musas, reais ou imaginárias. Mas quando você é um músico de fim de semana, como eu, é sempre complicado explicar para uma namorada atual porque você ainda toca músicas inspiradas antigamente (que foram inspiradas por outras musas, subentende-se...). Sim, mulheres têm ciúmes disso. Porque um elemento importante do caso amoroso, ou romance, e suas variações, é a simulação de uma espécie de universo particular imaculado, um simulacro de realidade feito pelos enamorados, tanto nos gestos como nos discursos, nas coisas que dizem, que cria um efeito de exclusividade e eternidade.

Em outras palavras, para simplificar um pouco, as pessoas querem, quando vivem um romance, acreditar que “são, sempre foram e sempre serão a única, a verdadeira paixão”. É a crença no amor para a vida toda que, na lógica reencarnacionista, não começou agora e seguirá para a eternidade futura. Não divide o tempo em passado e futuro sendo, portanto, uma eternidade infinita, pois não se localiza no tempo. Isto é, não é um amor que “começa” quando as almas se encontram, mas que sempre esteve lá, e o encontro seria só uma questão de coisa que acontece mais cedo ou mais tarde. Claro, levando em conta milênios e sucessivas encarnações.

Progredindo nesse raciocínio, pode-se dizer que não sendo a musa uma figura imaginária, mas uma pessoa real, e que esta espera, no gesto do poeta, uma promessa de amor eterno, chegamos a uma outra categoria. A de pessoa homenageada na canção, esteja ela viva ou não. Isso é um pouco diferente da musa, sim, mas se confunde às vezes. A pessoa homenageada na canção, diferentemente da musa, é facilmente identificável. Só isso. Toda pessoa homenageada pode ser musa, mas nem toda musa é pessoa.

Lenine faz uma música dedicada à musa da música, que se chama Todas Elas Juntas Num Só Ser. Ele passa pelas musas de vários compositores, principalmente aquelas que tiveram nome, isto é, eram identificáveis, pelo menos na letra da música. Em que medida as musas que ele cita foram pessoas reais, isso não tem a mínima importância. O que é genial é que ele pega essa idéia da ilusão de exclusividade (“só você, canto e toco só você”) e faz isso dialogar com uma multiplicidade de musas da música.

Mais genial ainda é como ele, com uma cara-de-pau que só podem ter os grande cérebros da criação, em duas estrofes, justifica uma traição que poderia cometer ao se encontrar hipoteticamente com a musa de algum seus ídolos:


Se um dia me surgisse uma moça dessas

Que, com seus dotes e seus dons

Inspira parte dos compositores

Na arte das palavras e dos sons

(...)

Se me surgisse uma moça dessas

Confesso que eu talvez não resistisse

Mas, veja bem, meu bem, minha querida

Isso seria só por uma vez

Uma vez só em toda a minha vida

Ou talvez duas, mas não mais que três


Entenderam o que é genial? Se for o caso, eu desfaço a confusão antes que alguém não perceba o que estou dizendo e ainda se sinta ofendida porque estou supostamente defendendo a cretinice masculina. Como eu disse ali acima, a musa não é necessariamente uma pessoa de carne e osso. O poeta, no caso o Lenine, ao admitir que eventualmente “talvez não resistisse” às musas de outros compositores, está se referindo ao processo de criação, em que ele poderia, mesmo que raramente, “pegar emprestado”. E ao dizer que “hoje eu canto só você.../ mais que tudo e todas/ só você/ que é todas elas juntas num só ser”, ele declara sua autonomia criativa, ao mesmo tempo que se subscreve a uma longa tradição poética. Viram? Lenine é genial!

Até a próxima!

Luis Felipe.

Link para a música, cifra e vídeo: http://www.cifraclub.com.br/lenine/todas-elas-juntas-num-so-ser/