Quero voltar às milongas do Bebeto Alves, mas dessa vez para elogiar muito o poeta e compositor Mauro Moraes. Os dois discos de Bebeto Alves, o de 1998 – Mandando Lenha; e o de 1999 – Milongamento, são inteirinhos com composições de Mauro Moraes. O compositor é o mesmo e o intérprete é também o mesmo. Mas daí alguém vai perguntar afirmando – então Milongamento deve ser mesmo um “prolongamento” do disco anterior? Bom, aí eu já não te garanto. São, a rigor, muito diferentes. Mas qual a diferença?
A diferença é justamente aquela, muito sutil, mas extremamente evidente para os violonistas, e que talvez passe despercebida para um leigo nesses assuntos – o culto à “alma” do violão. Em outras palavras, en el Mandando Lenha la guitarra platina se queda por cuenta del monstro Lúcio Yanel. No Milongamento, o violão pampeano fica a cargo do aguerrido Marcello Caminha. Percebem a diferença? Por isso eu digo, é uma diferença de estilo que o violonista imprime à música, que é mais facilmente identificável por aficcionados do violão mesmo. Quem não entende a diferença assim, só por fazer referência aos guitarristas, pode ouvir os dois discos no site oficial do Bebeto Alves www.bebetoalves.com.br, clica no link rádio, e escuta nos dois discos, de 1998 e 1999, respectivamente, o violão de Lúcio Yanel e o de Marcello Caminha.
Enfim, como eu disse, e devo me fazer cumprir, essa postagem é para falar mais do poeta do que dos intérpretes. Falemos do poeta e da sua criação.
Parabéns a Mauro Moraes, em primeiro lugar, pela contemporaneidade dos temas, a sensibilidade da poesia e, o que é mais difícil, conseguir colocar-se como um autor autêntico de uma obra consistente – num mundo que está dominado pela fé do dogma regional, por um lado, e pelo vírus da varíola do consumismo da última moda, por outro. A obra, arrisco dizer, não se ajoelha inteiramente ao culto regional, pelo contrário, debate-a no interior das próprias letras. Ela é dotada de um hibridismo muito sutil, e que por isso pode ter sido a escolha de Bebeto Alves, que sabe ler a cultura. A obra de Mauro Moraes é uma afirmação de identidade regional, mas que faz sentido em um contexto ultra-regional, nacional, mundial, e por aí afora. É aquilo que chamamos de música que desafia as linhas imaginárias que são as fronteiras nos mapas. Porque o poeta deve ir além do senso-comum, mesmo o senso-comum científico.
Mesmo nas gravações de Bebeto Alves já há um certo hibridismo. Os violões, tanto o de Yanel como de Caminha são regionais, têm aquela aparência básica da música gaúcha que teve origem nos estilos ibéricos, que sofreram influência árabe e cigana; mas eles também se viram às vezes obrigados a ultrapassar isto, a ir na dissonância impressionista, na dissonância dos acordes de jazz lento e de bossa nova. Muitos diminutos, muitas sétimas e nonas. Sétimas aumentadas, também. Toda a música, toda a musicalidade pode estar aí, nos casamentos da tradição com a pós-modernidade, do oriente com o ocidente, e do nosso humilde pago com o Brasil e o mundo. Uma complexidade artística que leva um tempo para ser ser produzida, e o resto da vida para ser compreendida.
A canção que escolhi para dizer alguma coisa é Com Cisco Nos Olhos, do Mandando Lenha (1998). Linda canção, belíssima letra. Ironia, no bom sentido, para poucos mesmo. O que se quer dizer com “com cisco nos olhos”? Homem, não chora. Gaúcho, se é mais homem, chora menos ainda. Deixa-se surpreender com um cisco nos olhos. É bem diferente do que chorar. É bem diferente de simplesmente se dizer que chora. É outra maneira de dizer, é uma inscrição em uma outra cadeia de sentidos. É, pelo uso da metáfora, mais poético dizer assim. E por ser mais uma dessas letras de peão, tosco ao mesmo tempo que emotivo, já provoca um estranhamento temático, que é figura da obra poética e literária.
Nessa canção se explora a oposição entre felicidade e tristeza (redondinha para uma análise semiótica, talvez, mas que eu não vou fazer aqui). Mas quero chamar atenção para alguns versos especificamente. Quando se diz, por exemplo, “quando escuto as notícias da minha saudade”, esse verso evoca a frase corrente “quando escuto as notícias da cidade”, mas dizendo muito, muito mais. Tem aí uma aglutinação de sentidos, e o sentido de “saudade” fica mais complexo do que o sentido corrente na língua. É saudade com um sentido poético num determinado contexto; é saudade da cidade, mas não só da cidade, é saudade da terra, do amor que ficou; saudade que comprime o tempo e espaço fazendo o violão desafinar e a corda arrebentar. Depois, “é o pecado de haver endurecido o carinho / milongueando sozinho com o mate lavado”, este verso que evoca “resmungando sozinho com o mate lavado”. E o anterior, do “carinho endurecido” é o debate sutil com os sentidos estabelecidos, é justamente esse negócio de se olhar para o imaginário sobre o gaúcho, macho, tosco, insensível, e etc e propor outra coisa. Por isso eu digo que Mauro Moraes não simplesmente se ajoelha ao dogma do culto regional. Nem tampouco o critica. Ele faz, com isso tudo, sua arte, no sentido próprio de culto ao belo. Ou seja, ele parte desse imaginário, o que é ou o que deve ser o gaúcho, e faz uma discussão, mas em nível poético e metafórico. Se é verdade que o sofrimento é universal, que é o que de mais humano há e que nos torna mais humanos, também é válido dizer que se está “com cisco nos olhos” dentro dessa cultura. Importa é como se diz regionalmente o que pode caracterizar, em essência, toda a espécie humana; este deveria ser o conceito discursivo de cultura.
A última estrofe, sim, será a “sanção cognitiva”. Depois do verso “apesar dos pesares o que mais me machuca”, na penúltima estrofe, que é uma preparação, segue-se uma enumeração de versos começados por “é...” que vão ter como últimos e derradeiros versos aqueles em que se admite chorar no retorno da alegria vinda dos outros, ou do retorno dos outros que trazem consigo a alegria para o convívio: “é não ter vergonha de chorar quando se está feliz / com a alegria dos outros voltando pra si”.
Com cisco nos olhos
Meu radinho de pilha toca de tudo, tudo o que eu acho bom
F#m
A lembrança de amigos nos discos
Bm                                                         E
O pago, enfim, tudo o que me faz feliz
A                                                        C#m
Ele é o culpado de todo esse amor
Bm                 (Bm/A)                   F#m (F#7)
Ele é o silêncio, meu convidado
D                   E           (E7)                   A           E
É o estado das coisas que a alma quer-se guardado
A
Não sei como um coração pleno em felicidade
E
Possa às vezes tornar-se um poço de tristeza
F#m
Quando escuto as notícias da minha saudade
Bm                                                        E
E o violão desafina, a corda arrebenta
A                                                          C#m
Apesar dos pesares o que mais me machuca
A                                                          C#m
É a distância de dentro que a gente retruca
D                                                          E
É o pecado de haver endurecido o carinho
Bm                   E           E7           A
Milongueando sozinho com o mate lavado
A                                                         C#m
É ficar em si mesmo proseando a toa
A                                                          C#m
Com a manada nos olhos da sua pessoa
D                                                          E
É não ter vergonha de chorar quando se está feliz
Bm/A                   E           E7           A
Com a alegria dos outros voltando pra si
Ah... escrever sobre essa música me deu até um negócio... Acho que me caiu um cisco nos olhos. Vou fechar a janela para interromper o minuano, e até a próxima.
Luis Felipe
P.S. O Mauro Moraes a que me refiro é o compositor gaúcho, não confundi-lo com seu xará, um político paranaense. Site oficial do artista: http://mauromoraes.com/
Um comentário:
Bah, eu não sei qual dos dois é melhor... acho que eu gosto mais do Mandando Lenha porque ouvi primeiro... e tem o seu Lúcio (que violão bonito, seu Lúcio...) que discaço! E que texto, seu Felipe! Isso aqui tá cada vez melhor!
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