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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Doces damas das camélias



O que tem a ver uma música da safra romântica do Roberto Carlos, um filme de Holywood que se passa em Las Vegas com o Nicholas Cage fazendo o papel de uma alcoólatra terminal, um romance francês do século XIX escrito pelo escritor francês Alexandre Dumas Filho, e uma clássica balada da banda inglesa The Police?

Aí é que está. É difícil se falar em aspectos autobiográficos quando se analisa a obra de um artista. A rigor, a obra é a obra, e isso não tem necessariamente a ver com a vida do artista. Se há artistas que misturam? Sim, há. Mas isto está longe de ser regra, muito mais provavelmente é a exceção. Dizer, por outro lado, que eventos da vida vão ter alguma influência sobre a obra, é outra coisa. Mas quase tudo é possível.

Caso alguém ainda não tenha respondido à pergunta inicial, eu dou a resposta: essas quatro obras têm em comum o fato de que o protagonista, ou o eu-lírico, no caso das canções, apaixona-se por uma cortesã, isto é, uma prostituta. Eu li em algum lugar, e a pessoa que escreveu jurava de pé junto, que Dumas escreveu A Dama das Camélias como uma forma de testemunho autobiográfico. Não posso dizer nem que sim, nem que não. Posso dizer, isso sim, que tal obra tem elementos notórios do Romantismo, e para quem não sabe romantismo nem sempre quer dizer paixonite, namorico, etc. O Romantismo, na literatura, é o período que reúne obras em torno de um estilo mais ou menos similar, porque tiveram influência da época - a transição do feudalismo para o capitalismo - e que daí se dizia que a cidade era degradante e o campo edificante. Uma série de coisas marcaram cerca de dois séculos do Romantismo na Europa: o êxodo rural e a formação das metrópoles, a decadência de monarquias e a ascensão da burguesia, e principalmente uma sensação de deslocamento que estava apenas começando.

O protagonista de A Dama das Camélias, Armand Duval, justamente, vai para a cidade – Paris - e conhece a cortesã Marguerite Gautier, por quem se apaixona. O romance (de amor) dentro da obra romântica (do período) existe, sim. Mas não é necessariamente mais nem menos romântico, no sentido mais popular do termo, do que outros períodos de outros estilos literários. Simplesmente, pelo conjunto de obras que se analisa se poderá dizer que, de modo mais ou menos predominante, em determinada época, na visão daqueles autores, casava-se mais por conveniência social do que por amor, ou vice-versa. Jane Austen, por exemplo, autora e alcoviteira da Inglaterra pré-capitalista, mostra em suas obras que os casamentos eram arranjados para servir à conveniência tanto da noiva quanto do noivo. E mesmo assim tem amor de sobra na obra da obra de Jane Austen, para quem quiser se divertir e se encantar com obras literárias que têm romance (de amor) sem ser românticas (do período).

Também posso dizer que A Dama das Camélias é uma obra que vale a pena ser lida. A ópera La Traviata de Giuseppe Verdi é uma releitura da obra de Dumas, o que só comprova seu impacto como uma narrativa fundamental na cultura literária (e musical, a partir da ópera). Mas também vale a pena ler, antes, Manon Lescaut de Abade Prévost (que também virou uma ópera, homônima, composta por Giacomo Puccini) e que, ao que parece, fez começar essa tradição das narrativas de alguém que se apaixona por uma mulher de conduta suspeita, que culminou com a polêmica e genial obra-prima de Gustave Flaubert, o romance Madame Bovary, cuja heroína e protagonista é uma mulher à frente de seu tempo que não pode ser comparada às outras, e que acabou virando filme muitos anos mais tarde. E dessa tradição, que provavelmente tem muito mais obras, eu aponto quatro que são da maior relevância: o próprio A Dama das Camélias, romance de Alexandre Dumas Filho; Leaving Las Vegas, filme com Nicholas Cage e Elizabeth Shue, dirigido por Mike Figgis e baseado num romance de John O'Brien (também acusado de fazer obra autobiográfica); Falando Sério, canção eternizada na voz Roberto Carlos e composta por Maurício Duboc; e Roxanne, canção da banda The Police.

O filme de Figgis é o máximo. O máximo em se falando de um amor ultra-romântico. O personagem de Nicholas Cage é um roteirista de cinema alcoólatra que, depois de ser despedido por não conseguir mais dar conta do trabalho em virtude do vício, decide ir para Las Vegas para se despedir da vida bebendo (e por isso o título é Despedida em Las Vegas). Nisso, ele acaba “esbarrando” na prostituta que é a personagem vivida pela bela Elizabeth Shue. Como ela é uma pessoa sem amor-próprio, e por isso é prostituta, na tese do filme, e ele também não tem amor-próprio, e por isso é escritor, digo, alcoólatra, suas duas almas inúteis e perdidas acabam se encontrando uma a outra. Eu encontrei o trailer no Youtube (vi o filme umas duas vezes há uns vinte anos) e achei que, pelo teaser, parece um filme leve e divertido. Mas o trailer engana, trata-se de um filme denso, de um relacionamento quase impossível e de um amor dolorido, em todos os sentidos.

As canções, diferentemente do romance e do filme, são construções bastante mais modestas, em termos de narrativa. Mas aí que é bom – a letra de música, como a poesia em geral, deve ser concisa e breve, trazer uma grande dimensão narrativa, se for o caso, na ligeireza de uma enunciação, num sopro de fala. Nas duas canções, coincidentemente, o eu-lírico dirige-se à mulher da (sua) vida. Em Roxanne não há dúvidas quanto a essa interpretação que diz que a mulher é, como se diz, da vida fácil. Canta-se “you don't have to sell your body through the night (...) you don't have to walk the streets for money”. Claro, a menos que se pense que vender o corpo pela noite e caminhar nas ruas por dinheiro seja outra coisa. Em Falando Sério essa questão da amada e interlocutora do poeta ser uma garota de programa é quase sutilmente sugerida na estrofe em que se canta “falando sério / eu não queria ter você por um programa / e apenas ser mais um em sua cama / por uma noite apenas e nada mais”.

Aliás, o apaixonado por Roxanne, pelo que se diz na letra, parece já ter tido progressos em “reabilitar” a moça, quando diz “those days are over”. Mas ele tem que voltar a lembrá-la de que ela não precisa vestir o vestido vermelho, usar a maquiagem pesada e compartilhar seu corpo com os habitués de determinados arredores de Westminster at night, porque parece que ela gosta de se dedicar ao trabalho. A letra de Roxanne é um choramingo dele nesse sentido; ele diz “you don't have to put on the red light” que é uma frase ambígua, mas que não salva a reputação dela de forma alguma.

E se, por um lado, em Roxanne, o poeta apaixonou-se antes, imprecisamente, mas no passado (“I've loved you since I knew you”); por outro, em Falando Sério o eu-lírico parece estar se apaixonando naquele momento. Canta-se “por uma noite apenas e nada mais”. Perguntamos – é a primeira noite dele com ela? A última? Não necessariamente. Falando Sério é uma narrativa um pouco mais complexa e menos clara do que Roxanne; em alguns momentos da letra parece haver uma rotina de encontros (“é bem melhor você parar com essas coisas / de olhar pra mim com olhos de promessas”) e em outros, o eu lírico parece apegar-se ao momento desse encontro como se fosse a única vez (entre nós dois tinha que haver mais sentimento / não quero seu amor por um momento / e ter a vida inteira para me arrepender).

Ah, eu já ia esquecendo de outro filme que tem mais ou menos uma história parecida: Uma Linda Mulher, com Julia Roberts e Richar Gere. Nãããão, melhor seria nem ter lembrado mesmo. A diferença? Uma Linda Mulher é inspirado numa fábula como Cinderela, é um mamão-com-açúcar perto de Despedida em Las Vegas e das outras histórias: não é uma narrativa densa feita de Romantismo e realidade!


Os links:

Falando sério
http://letras.terra.com.br/roberto-carlos/77139/

Roxanne
http://letras.terra.com.br/the-police/31174/

Até a próxima!

Luis Felipe

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