Note in English: scroll down up to the bottom of the page.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Para o poeta do infinito


Um amigo tem me sugerido que eu escreva alguma coisa sobre o Paulinho da Viola. Sobre esses caras, essezinhos... Paulinho da Viola, Chico Buarque, outros poucos, eu me recuso a falar. Não que não mereçam um comentário de verbo frouxo e descompromissado do blog de boteco. Vejo o blog como uma conversa de boteco. Os textos são mesmo às vezes inspirados em argumentos de boteco. O que eu poderia dizer sobre o consagrado Chico? Chico é tudo. É Chico na música e Machado de Assis na literatura, não pelas suas incomparáveis qualidades e temáticas; pois são ótimas as qualidades de ambos, cada um à sua medida artística; mas são qualidades diferentes, de dizeres e significados comparavelmente contundentes na cultura brasileira e no que se diz sobre essa cultura. Se comparo Chico Buarque a Machado de Assis é pensando na recepção de sua obra e na produção que se faz sobre eles. Não falo em relação à obra. Refiro-me ao fato que todo mundo já disse tudo. Então estou isento de falar de Chico. Mas falar sobre Paulinho é mais difícil que tudo.

Paulinho é pouco falado, talvez, apesar de muito reverenciado, salvo exagero, pelos maiores e melhores. Excetua-se o exagero. Porque nada em Paulinho é exagerado. Artista meticuloso, quase minimalista, quer passar a sua música e não causar uma impressão pela imagem. Quem lembra de Paulinho da Viola se apresentando nas últimas duas ou três décadas senão trajando um sóbrio conjunto de terno e camisa? Há quem diga que ele se apresenta burocraticamente. Há quem diga que artista tem que ter um moicano ou uma argola gigante no nariz. Não se engane: aqueles que souberam e sabem fazer A ARTE não necessariamente sentem a necessidade de fazer do seu corpo e do seu guarda-roupa um ateliér de bizarrices ultramodernistas. Paulinho é conciso e preciso. Até no guarda-roupa.

E nas letras... é aí que coisa encrespa. Se do Chico já se disse tudo, do Paulinho da Viola, não necessariamente. Porque Chico, como bom malandro, faz seus adoradores se sentirem inteligentes. Todo mundo tem uma citação de Chico na manga para ocasiões oportunas. Mostrar para a garota (ou para o garoto) que conhece, e o quanto conhece de Chico, é mostrar que tem conteúdo, e ganhar pontos na tabela geral do flerte. Eu acho que sei tudo de Chico, vida e obra completa de trás pra frente, mas não falo nem o nome dele inteiro porque me recuso. Mas falar de Paulinho é diferente; é na verdade quase uma impossibilidade. Paulinho da Viola é o poeta do silêncio: “o poeta declina daquilo que ele não sente / e o silêncio é o peso que ele conduz / mas se o tempo se acha no céu do poente / e do céu se retira um pedaço do azul / o poeta ressurge e lança no ar a semente / e reparte feliz a sua luz”. Quer dizer, essa canção, Quando O Samba Chama, quase uma brincadeirinha em forma de samba, em meia dúzia de versos, diz muito sobre o fazer poético.

Algumas letras de Paulinho da Viola nos provocam reflexões profundas. Nenhuma conclusão verbalizável talvez. Estou falando, mais ou menos, no todo da obra, e do todo de cada letra. Paulinho não pode ser considerado senão no conjunto da obra. Vide, por exemplo, suas recorrentes metáforas de marinheiro. Não se pode falar de Timoneiro (“não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”), sem referir a Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida (“foi um rio que passou em minha vida / e meu coração se deixou levar”), ou Mar Grande (“se navegar no vazio / é mesmo o destino do meu coração / parto pra ser esquecido / navio perdido na imensidão”) ou às canções em que a metáfora está mais escondida, não presente no título, como Argumento (“sem preconceito ou mania de passado / quem não quer ficar do lado / de quem não quer navegar / faça como um velho marinheiro / que durante o nevoeiro / leva o barco devagar”) ou Novos Rumos (“vou imprimir novos rumos / ao barco agitado que foi minha vida / fiz minhas velas ao mar / disse adeus sem chorar / e estou de partida”).

O que é essa metáfora recorrente? Por que isso? Se ele é o poeta do silêncio que está sempre metaforicamente navegando, do que ele fala exatamente? Esse meu amigo que ouve Paulinho da Viola disse, sem exatamente dizê-lo assim, que ele é o poeta do tempo metafísico. Quando se diz, em Para Ver As Meninas, “silêncio por favor (...) hoje eu quero apenas uma pausa de mil compassos (...) quem sabe de tudo não fale / quem não sabe nada se cale”, e logo após se anuncia o objetivo pouco modesto (ele pode) “porque hoje eu vou fazer /ao meu jeito eu vou fazer / um samba sobre o infinito”, no próprio samba que já está feito, cria-se um efeito de algo sutilmente eterno, se se pode dizer assim. Porque ao dizer “vou fazer um samba sobre o infinito”, e o samba que se escuta é o próprio samba a ser feito, fundem-se presente e futuro, e também passado, que é quando, na realidade, houve o trabalho da criação poética. Mas é um argumento difícil, senão de aceitar, pelo menos de formular. Talvez ele retome, não sei, de Pessoa, que “navegar é preciso / viver não é preciso”, porque de navegar que é feito o viver (com sentido diferente ao dado pelo poeta), então navegar é viver, e isso implica a passagem do tempo. E como esse tempo é sempre inapreensível, tal qual a água do rio que sempre e eternamente passa, só cabe numa metáfora de marinheiro. Num conjunto de metáforas. No conjunto da obra de Paulinho da Viola. É o viver que melhor se explica nas metáforas de navegar, porque o tempo, de qualquer forma que se olhe, é abstrato, invisível e apenas experienciado no presente e fugazmente. Não se pode “ver” o passado. Não se pode prever o futuro. No presente só se pode estar, e estar no tempo presente e senti-lo ao mesmo tempo é quase conversa de louco ou papo de livro de auto-ajuda. Mas as metáforas de marinheiro criam um efeito quase que visual para o que é esta passagem do tempo, para o que é o transcorrer da vida. Acho que estou passando da conta. Garçon, a saideira!

Eu não imagino muita gente discutindo as letras de Paulinho da Viola. Exceto talvez, aquelas menos elaboradas, que também existem. Mas as letras mais sofisticadas não são para qualquer um. Talvez na mesa ao lado, nesse mesmo boteco, se encontrássemos o Ferreira Gullar, o Chico Buarque, o Aldir Blanc e o Leminski, este se ainda fosse vivo, esses poderiam estar falando com propriedade das letras mais poéticas de Paulinho. Outros meros mortais estariam sendo atrevidos se falassem. Eu quase me atrevi. Mas não. Foi tudo conversa de boteco, desconsiderem. Só disse que Paulinho da Viola é o poeta do silêncio, e cumprindo seu desejo para que seja feito o samba sobre o infinto, aqui me calo.



Até a próxima!

Luis Felipe

Um comentário:

Anônimo disse...

Antes de chegar no "Garçon, a saideira!" eu já estava pensando "que que eu fui fazer??", mas depois tudo fez sentido... ou sentido nenhum, que às vezes é o propósito de algumas excelentes canções. Acredito que tenha sido um exercício gratificante ficar remoendo essas idéias e formular o argumento, hahahaha! Tá excelente, irmão, acho que era isso que eu queria dizer aquele dia, mas ainda tava de ressaca (taí, outra metáfora marinha...). Abraço!