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sábado, 2 de outubro de 2010

À musa da música

Lenine é genial.

É recorrente entre os apreciadores de música a ideia de que a criação é motivada por um acontecimento ou um ente (um ser). O ente, mais conhecido como musa desde os tempos das epopeias clássicas, transformou-se modernamente na figura de uma mulher. Isto é, com o tempo, as musas deixaram de ser deusas-ninfas, um artigo de mitologia, para se tornar gente de verdade. E mesmo como gente de verdade servindo de musas, ainda cabe a ressalva – podem ser reais ou imaginárias. Porque há musas, mulheres reais, que por vezes inspiraram os poetas e compositores, bem como há compositores que têm inspiração (ou tem “musa”) mas ela não é uma pessoa de carne e osso. Não é nem necessariamente uma mulher. Nem necessariamente homem, tampouco. É só pura inspiração mesmo, o que motiva a criação para compor a canção.

O ótimo João Donato, no documentário Coisa Mais Linda, do cineasta Paulo Thiago, fala que “atrás de uma boa música sempre tem uma boa mulher”, e mostra uma valsinha que compôs na infância para sua primeira paixão. Eu, compondo minhas humildes polcas, tive musas, reais ou imaginárias. Mas quando você é um músico de fim de semana, como eu, é sempre complicado explicar para uma namorada atual porque você ainda toca músicas inspiradas antigamente (que foram inspiradas por outras musas, subentende-se...). Sim, mulheres têm ciúmes disso. Porque um elemento importante do caso amoroso, ou romance, e suas variações, é a simulação de uma espécie de universo particular imaculado, um simulacro de realidade feito pelos enamorados, tanto nos gestos como nos discursos, nas coisas que dizem, que cria um efeito de exclusividade e eternidade.

Em outras palavras, para simplificar um pouco, as pessoas querem, quando vivem um romance, acreditar que “são, sempre foram e sempre serão a única, a verdadeira paixão”. É a crença no amor para a vida toda que, na lógica reencarnacionista, não começou agora e seguirá para a eternidade futura. Não divide o tempo em passado e futuro sendo, portanto, uma eternidade infinita, pois não se localiza no tempo. Isto é, não é um amor que “começa” quando as almas se encontram, mas que sempre esteve lá, e o encontro seria só uma questão de coisa que acontece mais cedo ou mais tarde. Claro, levando em conta milênios e sucessivas encarnações.

Progredindo nesse raciocínio, pode-se dizer que não sendo a musa uma figura imaginária, mas uma pessoa real, e que esta espera, no gesto do poeta, uma promessa de amor eterno, chegamos a uma outra categoria. A de pessoa homenageada na canção, esteja ela viva ou não. Isso é um pouco diferente da musa, sim, mas se confunde às vezes. A pessoa homenageada na canção, diferentemente da musa, é facilmente identificável. Só isso. Toda pessoa homenageada pode ser musa, mas nem toda musa é pessoa.

Lenine faz uma música dedicada à musa da música, que se chama Todas Elas Juntas Num Só Ser. Ele passa pelas musas de vários compositores, principalmente aquelas que tiveram nome, isto é, eram identificáveis, pelo menos na letra da música. Em que medida as musas que ele cita foram pessoas reais, isso não tem a mínima importância. O que é genial é que ele pega essa idéia da ilusão de exclusividade (“só você, canto e toco só você”) e faz isso dialogar com uma multiplicidade de musas da música.

Mais genial ainda é como ele, com uma cara-de-pau que só podem ter os grande cérebros da criação, em duas estrofes, justifica uma traição que poderia cometer ao se encontrar hipoteticamente com a musa de algum seus ídolos:


Se um dia me surgisse uma moça dessas

Que, com seus dotes e seus dons

Inspira parte dos compositores

Na arte das palavras e dos sons

(...)

Se me surgisse uma moça dessas

Confesso que eu talvez não resistisse

Mas, veja bem, meu bem, minha querida

Isso seria só por uma vez

Uma vez só em toda a minha vida

Ou talvez duas, mas não mais que três


Entenderam o que é genial? Se for o caso, eu desfaço a confusão antes que alguém não perceba o que estou dizendo e ainda se sinta ofendida porque estou supostamente defendendo a cretinice masculina. Como eu disse ali acima, a musa não é necessariamente uma pessoa de carne e osso. O poeta, no caso o Lenine, ao admitir que eventualmente “talvez não resistisse” às musas de outros compositores, está se referindo ao processo de criação, em que ele poderia, mesmo que raramente, “pegar emprestado”. E ao dizer que “hoje eu canto só você.../ mais que tudo e todas/ só você/ que é todas elas juntas num só ser”, ele declara sua autonomia criativa, ao mesmo tempo que se subscreve a uma longa tradição poética. Viram? Lenine é genial!

Até a próxima!

Luis Felipe.

Link para a música, cifra e vídeo: http://www.cifraclub.com.br/lenine/todas-elas-juntas-num-so-ser/

Um comentário:

Anônimo disse...

Genial é tu, cara de tatu!
Os textos estão cada vez melhores, irmão!!
Tá, o Lenine até que compõe direitinho...
Abraço!