Quem gosta profundamente de música geralmente passa longe da televisão.
Existe uma discussão em torno da palavra “arte” que é muito antiga. Vem desde os gregos, pelo menos, a noção de belo, uma noção filosófica que é atribuída à natureza humana (isto é, embora cultural, afirma-se estar na natureza do homem), e que é a noção que nos leva a produzir e a consumir arte. A arte, em uma de suas definições mais antigas, é a materialização do belo através de diversos meios físicos (visual, sonoro, etc). A arte clássica ocupava-se, generalizando, de “imitar a natureza, embelezando-a”. Por isso herdamos aquelas esculturas da antiguidade clássica valorizando formas, propondo formas mais perfeitas que as da realidade. Quadros e esculturas tendiam a ser reproduções aperfeiçoadas da natureza.
Uma cisão que aconteceu na arte foi quanto a sua “aplicação”. Um dia alguém disse que a arte com um fim nela mesma era alienante, e que a arte devia servir à evolução (ou à revolução, mais especificamente). Temos, a partir disso, dois extremos para a “arte” consequentemente. Por um lado, a arte que não imita a natureza embelezando-a, mas justamente pelo contrário, questionando-a, a arte que pretende mostrar o equívoco, o erro, o feio, o anti-belo. E o outro extremo, a arte aplicada ao mundo do consumo, que ainda se serve, de certa forma, da referência ao belo, mas não com um fim em si mesma. As artes plásticas sempre foram os exemplos melhores para demonstrar isso, mas falemos de música que é o nosso chão.
A música clássica investia na harmonia “confortável”. Até a própria noção de harmonia se modificou com o surgimento da música moderna e com a aceitação da dissonância. A partir da cisão, portanto, da arte com fim em si mesma (a chamada “arte pela arte, nas diversas línguas), a música entrou nesse processo “evolutivo” atrasada em relação às demais artes, devido a questões técnicas, simplificando um pouco. Enquanto um artista plástico dava conta de realizar a sua obra e deixá-la para exibição permanente, a música, antes das tecnologias de gravação e reprodução, dependia de uma turma grande para acontecer: o compositor e/ou o maestro com uma formação muito aprofundada, vários músicos que integravam uma orquestra, ou até conjuntos consideravelmente menores, como grupos de câmara, além de um lugar apropriado pela sua acústica para a execução propriamente dita. Mas a música, para se realizar, dependia, a cada vez, de vários fatores para poder ser executada, enquanto os quadros e esculturas ficavam expostos e não dependiam mais do artista para ser apreciados.
Foram os países do Novo Mundo, e seus principais representantes, os Estados Unidos e o Brasil, entre outros, que desencadearam uma etapa na revolução da música no mundo ocidental. O colonialismo europeu nesses países evidenciou uma fissura social e de raça muito grande. Tinha-se, por um lado, os europeus com sua cultura branca, de religião cristã (protestante nas colônias inglesas e católica nas espanholas e portuguesas), que se impunha na relação colonizador-colonizado. Por outro, havia os habitantes nativos, os índios, e os escravos trazidos sobretudo do continente africano.
Na época do colonialismo índios e negros não eram considerados gente. Não existe revisionismo histórico que vá conseguir distorcer essa verdade. Com sorte, os índios da América do Sul podiam ser catequizados para deixar de ser pagãos e, talvez, quem sabe, conseguir um espaço no céu dos brancos. Índio bom (ou o bom selvagem) era o que abandonava Jaci e passava a cultuar o Deus branco. Os índios da América do Norte, por sua vez e falta de sorte, foram dizimados às pencas, tribos inteiras, e os intelectuais defendiam o extermínio dos selvagens nos tablóides locais. Sobraram os negros exilados dentro do país para o qual haviam sido trazidos como escravos e posteriormente libertos. Assim como no Brasil havia os negros alforriados e sem condições de se estabelecer economicamente, pois não herdavam terras. E foi justamente nesse conflito social e cultural que surgem, o que chamo aqui generalizando, as revolucionárias músicas afro-americanas que desencadearam nos estilos modernos: o jazz e o blues nos EUA, e o choro e o samba no Brasil, os ritmos caribenhos na América Central, e assim por diante.
Veja-se que dizer que havia um conflito cultural entre europeus brancos e ex-escravos implica dizer que estes tinham de fato uma cultura, e essa visão é na verdade bem recente. Na época do colonialismo não se considerava que tivessem cultura; e sua “cultura”, quando admitida, era considerada infinitamente inferior à cultura branca, europeia e cristã. Noções talvez até recentes na antropologia vieram conferir status de cultura legitimamente humana para estes seres outrora considerados inferiores. A partir de então, a cultura dos "selvagens" não era mais necessariamente inferior, mas "diferente".
Esse percurso histórico serve só para mostrar onde se dá, no mundo, a participação da música na história do rompimento da arte com seus objetivos “fúteis” que se tornaram “úteis”. A música mundial é revolucionada a partir dos continentes americanos, principalmente.
A rigor, alguns jazz chants mais antigos eram longas conversas improvisadas dos escravos nas plantações de algodão nos EUA, em combinações de fuga e às vezes até orações, cuja forma musical herdeira mais precisa são os negro spirituals. No Brasil, teve ainda a malandragem da capoeira, uma luta disfarçada em dança, além da conhecida história do casamento do fado português com o lundu africano, dando origem aos primeiros maxixes, avôs do samba original. Essa arte nova, a emergência da cultura negra como foi o caso dos EUA, ou da cultura miscigenada, como foi o caso do Brasil, confirmavam, por um lado, a definição clássica de arte na essência do humano e, por outro, conferia o status de humano para os até então não-humanos, os africanos e seus descendentes.
Nesse sentido, essas manifestações artísticas e musicais foram revolucionárias, pois nelas está o primeiro gene dos direitos humanos de igualdade modernos. Foi praticamente nas Américas, primeiramente, que a música deixa de ter um fim em si mesma ou existe somente para entreter a nobreza. Abreviando novamente a história para não ficar muito exaustivo, a cultura branca dominante, aos poucos, passa a incorporar a contribuição negra e as Américas se divorciam política, cultural e economicamente, dos países europeus colonizadores. O colonialismo foi uma “experiência” que deu errado, e que por isso deu certo.
A segunda parte dessa revolução na música se dá com o surgimento das tecnologias diversas, sendo cada uma delas responsável por uma parte da história evolutiva: o rádio que permitiu a veiculação do som à distância, a eletricidade que permitiu a criação dos equipamentos de som elétricos, a gravação do som em discos planos sulcados e sua reprodução via gramofones, etc. Claro, não posso deixar de mencionar a fábrica e a produção em larga escala tanto dos aparelhos de som quanto dos discos. Mais recentemente, no século passado, aparece a televisão na esteira das evoluções tecnológicas, veiculando não só o som, mas também a imagem.
Com isso tudo, já não se precisava do músico executando as músicas localmente e na hora. A questão tecnológica possibilita, aos poucos, o surgimento de uma indústria da música, e essa passa a se servir da noção de belo da arte com dois objetivos distintos: o primeiro, de criar uma cultura de consumo musical, o que seria ainda a música com um fim em si mesma, e uma parte da música que se especializa para ser “aplicada” à propaganda, a música que serve de veículo de promoção para o consumo de outros produtos que não a própria música. Na contemporaneidade, contudo, todas as artes são aplicadas ao mundo do consumo e perderam especificidade enquanto arte propriamente dita.
Uma questão perturbadora para os apreciadores de música é que justamente se perderam as fronteiras entre o jingle, a música feita para promover outas coisas que não ela mesma, e a música com o fim em si mesma, a música da “cultura de consumo musical”. Modernamente, pode-se dizer, a noção de belo já se virou do avesso umas trinta, quarenta vezes, foi jogada fora à revelia daquela antiga necessidade humana, e o que acaba se impondo a todo custo é a música com fins comerciais, numa análise superficial e generalizante, admito. Hoje em dia quase não se faz mais arte com fim em si mesma, tudo é feito para o consumo da massa, toda composição musical precisa ser jingle de si mesma.
Mas fica mais evidente essa falta de limites na televisão, porque são raros os programas de música que mostram o que não seja essa extremamente e estritamente comercial. Uma benção, entretanto, na televisão brasileira são os três programas que passam na TVE no domingo de manhã (e em outros horários): Viola, Minha Viola, com apresentação da legendária Inezita Barroso; o Sr. Brasil, com apresentação do carismático e multi-talentoso Rolando Boldrin, e um programa restrito ao Rio Grande do Sul, o Galpão Nativo, com apresentação do tradicionalista Glênio Fagundes, que recentemente passou a ser acompanhado por Maria Luiza Benites.
Quem pode assistir a esses três programas, depois de primeiramente aprender a distorcer o nariz para a música “dos outros”, porque ela no fundo não é uma ameaça nem para a sua música nem para a sua cultura, quem pode assisti-los faz uma verdadeira faculdade de história da música brasileira sem sair de casa. Até mesmo os conflitos regionais e sociais ganham novas explicações (menos conflituosas, às vezes mais), só pela própria história dos apresentadores.
Inezita Barroso, que apresenta o programa de música sertaneja do sudeste e do centro-oeste, para quem não sabe, foi provavelmente a primeira cantora de “músicas gauchescas”, escolhida por Barbosa Lessa e Paixão Cortes para gravar os primeiros cancioneiros folclóricos da cultura gaúcha (O Pezinho, Balaio, etc). O Rolando Boldrin é, talvez, a verdadeira enciclopédia da música urbana e rural do Brasil, e o Sr. Brasil presta a devida homenagem à música brasileira, mostrando, diversas vezes, como a música urbana moderna deve sua existência à música rural tradicional (ou sertaneja) e vice-versa.
O Galpão Nativo, comparado com os outros programas similares, que têm nome de churrascarias chiques em Porto Alegre, é muito melhor que os outros pela simplicidade e pela honestidade da proposta de mostrar a música gaúcha menos servil a interesses econômicos de emissoras reguladoras da cultura de consumo e do consumo de cultura. E Glênio Fagundes, cuja história de vida se confunde com a história do tradicionalismo gaúcho, é também a “ovelha negra” da família Fagundes, um dos poucos que não se vendeu ao sistema (Rede Brasil Sul...).
É muito curioso notar que as ações mercadológicas que investem no esquecimento da história e no apagamento da memória das artes são intimamente relacionáveis às indústrias de consumo. O que nos chega aos ouvidos pela televisão nem sempre é o melhor, ou o que faz mais sentido para a gente. Mas junto com essa cultura da arte massificada e pasteurizada vem toda uma enxurrada de discursos para nos convencer de que aquilo que estamos vendo e que temos que consumir imediatamente é o melhor. Quem conhece história das manifestações artísticas não deixa de consumir, mas consume mais conscientemente. E o perigo disso é que esses consumidores conhecedores da história e portanto mais conscientes talvez não consumam as obviedades do show business, os sucessos da hora. Que problemão! Já pensaram se todos começassem a se rebelar contra a manipulação da mídia? O que aconteceria é que o mercado teria que se submeter ao gosto e não o gosto se submeter ao mercado, como acontece. Com certeza seria melhor.
Um paradoxo da contemporaneidade é justamente esse: a música aparentemente fútil, isto é, aquela sem uma finalidade precisamente comercial, a música feita somente para o culto ao belo, ou ao anti-belo, talvez, mas que não se submete às regras da cultura de massa facilmente comercializável, essa que é atualmente a arte mais engajada. E que, por tudo isso, dificilmente aparece na tevê. Mas eu não vou dizer o que é uma coisa ou outra, porque isso seria meramente uma questão de opinião...
Até a próxima!
Luis Felipe
P. S. O crédito da imagem é do blog de Malu Kiss, um site que tem várias fotos de coisas antigas e até trilha sonora para quem visita: http://malukissbenevides.blogspot.com/2010/07/tv-antigas.html
Um comentário:
Domingo de manhã (exceto os de ressaca) aqui em casa é sagrado: Sr. Brasil e Galpão Nativo tem prioridade!
Ótimo texto!
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