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sábado, 27 de novembro de 2010
A lenda do eterno retorno revisitada
Lulu Santos acerta 98% das vezes. E os 2% restantes a gente simplesmente ignora, ou não conhece mesmo, o que é quase a mesma coisa. Ou não, nem muito antes pelo contrário. Mas sem tergiversar muito, vamos ao assunto.
Vale de Lágrimas é uma canção muito esperta, e que pode pegar o seu ouvinte despreparado. Despreparado para as sacanagens que Lulu Santos faz com essa canção. Em Vale de Lágrimas nota-se que há uma discussão em cima de grandes clichês da música em geral. Para começar, a lenda do eterno retorno, ou melhor dizendo, exatamente o verso “volta para mim”, que ele mesmo sempre volta. Há muitas canções com esse verso. Há canções com esse verso servindo como título. Há canções dos mais diversos estilos musicais que em algum ponto vão dizer “volta para mim”.
Como então um compositor faz uma canção em que quer dizer “volta para mim” sem que isso seja simplesmente um clichê, como se ele não tivesse pelo menos uma vontadezinha de inovar? Eu sugeriria, como uma potencial resposta, que o poeta tem que, primeiramente, saber que está no terreno da coisa repetida exaustivamente. Claro que o clichê, por si só, pode funcionar. Tanto que vira clichê. Mas é mais legal, isso ninguém discute, quando existe a consciência disso, faz-se alguma referência ao fato de se estar lançando mão de um clichezão, e assim, sair da mesmice antipoética.
A perspicácia de Lulu sobre esse clichê, em Vale de Lágrimas, é de uma sutileza só. Diz a letra “faça-me um favor / volta para mim / é o que sei dizer / nada mais / se não me repetir”. Ora, preciso ser mais explícito? “Repetir-se”, ali, além do que significa dentro da própria lógica da letra, também significa repetir a tradição poética das canções que dizem “volta para mim”, que é o próprio efeito clichê. Além desse refrão que é excepcionalmente bom, a letra toda se constrói em cima de uma metáfora, em que o ser romântico apaixonado e abandonado só se vê diante de duas alternativas: ou jogar-se no mar para se afogar ou atravessar um deserto. É bem legal quando ocorrem as aliterações na sequência dos adjetivos “molambo”, “sonâmbulo”, “insone” e “insano”. E para falar da música propriamente dita, mais uma sacanagem, no bom sentido. É uma música alegre, construída em tom maior, e não uma música melancólica, triste, etc, como seria normal para uma música em que se diz “volta para mim”. Quer dizer, são diversos níveis em que o compositor pode retomar os clichês para sair deles.
Mas para sair do meu próprio clichê que é sempre repetido e insistentemente falado no blog (as letras), vou falar de outra coisa. Vou falar um pouco do clipe. Genial! Fica de parabéns o cérebro que bolou esse clipe, que eu não sei quem é. O clipe conta uma história, cuja sinopse é bem simples: o músico para no canteiro no meio de um viaduto, guitarra na mão e amplificador do lado, no meio da noite, em frente ao prédio daquela que se “desapegou” dele. E começa a tocar. O visual do clipe é meio que a fotografia que usaram no Sin City, o filme; preto e branco e tal, até o próprio Fuca da polícia evoca algo do filme Sin City, inspirado e baseado no quadrinho homônimo do Frank Miller. Sei lá, posso estar falando besteira. Mas vai ser só mais uma no meio de tantas. Posso re-narrar a história que conta o clipe, chamando atenção para uns detalhes que acho fundamentais.
Voltando à história, antes mesmo do cantor começar a cantar, uma moça com uma bolsa grande sai do prédio. Aos poucos, os vizinhos do apartamento começam a acordar. A homenageada pela serenata é uma das últimas a acordar. Um tiozinho mal humorado (no lugar dele, também estaríamos) acorda e chama a polícia. Um dos moradores acorda, sente o espaço restante da cama vazio e vai olhar o guarda-roupa, que também está vazio.
E daí? O que tem a ver o cara do guarda-roupa com a história? O seguinte: a história na verdade são esses dois micro-romances paralelos, do serenatista lá em baixo e da desapegada lá em cima, e o do cara do guarda-roupa. Mas o que diz o guarda-roupa vazio, para ser importante para a história contada pelo clipe? Diz justamente que nem sempre foi vazio, diz que ali a sua companheira guardava suas roupas. E que ele está, sim, sozinho. Porque o guarda-roupa está vazio.
Voltando à serenata, tem um efeito engraçado a moça jogando no cantor uns LPs. Seriam os discos dele? Dele que comprou os discos na loja ou dele que fez as músicas dos discos? Depois ela começa a jogar as cartas de amor e as fotografias. Ele não vai embora. Mas algo está para mudar na atitude dela. Ela pega uma carta ou fotografia que a faz parar os lançamentos da sacada. Alguma coisa toca ela, senão só no objeto que tem na mão, talvez na situação toda. Ela toda revoltada na sacada e ele pagando um micão lá em baixo, só por causa dela. Ela finalmente é tomada por compaixão e vai pelo menos ouvi-lo. Quer dizer, ela já estava ouvindo, todos no prédio estavam. Ela vai ouvi-lo no outro sentido.
Ela desce do jeito que está vestida para dormir, de calcinha e blusa (e nem precisava mais!!!), além de um casaquinho comprido para se proteger do frio da madrugada. Mas o vizinho que é o tiozinho já chamou a polícia, e a polícia está vindo. A polícia recolhe o homem que está perturbando a ordem e o horário de silêncio. A bela assiste, do meio da rua, seu pretendente ser levado na viatura do Sin City. E no apartamento do cara que foi ver o guarda-roupa, alguém retornou. Era a moça que tinha saído bem no começo do clipe, a companheira do cara do guarda-roupa (com as roupas na bolsa grande). Ela não chegou na esquina e se sensibilizou com a serenata que era para outra. É a metáfora da construção poética, inclusive em letras de música, que não necessariamente “funciona”, num certo sentido, para quem a faz nem para a “musa”, mas mais para quem as escuta.
Vale de Lágrimas
Deixa eu lhe dizer
O que eu passei
Desde que você
Se desapegou de mim
Eu zanzei pelas ruas,
Um molambo
Sonâmbulo,
insone e insano
Queria me atirar no mar
Só para me afogar
Que ainda é melhor
Que ser um devedor
Nas contas do amor
Preferia um deserto atravessar
Sob o sol e as noites sem luar
Do que dar meu braço a torcer
Que você não está
Que você não vem
Faça-me um favor
Volta para mim
É o que sei dizer
Nada mais
Se não me repetir
Que zanzei pelas ruas
Um molambo, sonâmbulo
Insone e insano
Queria me atirar no mar
Só pra me afogar
Que ainda é melhor
Que ser um desertor
Dos campos do amor
Preferia um deserto atravessar
Sob o sol e as noites sem luar
Do que dar meu braço a torcer
Até a próxima!
Luis Felipe
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