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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Não repare a letra, a letra é de minha mulher...


Há uma frase dita por Holden Caufield, protagonista e narrador em 1ª pessoa do Apanhador no Campo de Centeio, do esquivo, há pouco falecido e há muito consagrado escritor americano J. D. Salinger, com a qual ando me identificando muito ultimamente: Sou quase um analfabeto, mas leio bastante (no original “I'm quite illiterate, but I read a lot”). Claro, algum tradutor melhor que eu poderá discordar da minha tradução e propor, corrigindo-me, que “illiterate” seria melhor traduzido como “iletrado”. Eu também não discordaria de quem discordasse de mim, pois nem sempre eu concordo comigo mesmo. Enfim. A questão, por outro lado, que eu proponho é do sentido tanto de analfabeto quanto de iletrado. O que é um e o que é outro?

A diferença entre iletrado e analfabeto não é tão clara. E vão-se longas décadas que tínhamos altos índices de analfabetismo, pessoas que não tinham qualquer contato com a palavra escrita. Se antigamente tínhamos uma divisão bastante precisa da sociedade entre os que tinham cultura letrada e os que não sabiam ler nada, hoje arrisco dizer, numa crítica social tão irresponsável quanto sem compromisso, que temos poucos analfabetos, mas muitos iletrados, mesmo entre os que leem.

Nessa contradição de Caufield, o que não é meu caso, pois no meu caso ainda pode ser verdade, como definir um sujeito que se diz quase analfabeto ou iletrado, mas que lê bastante? O estranho personagem do Apanhador no Campo de Centeio ia mal na escola, sim, mas suas melhores notas eram em inglês (língua materna), justamente porque escrevia bem e era até reconhecido pelos colegas por isso. Tem até uma situação em que ele se irrita porque um colega mala pede-lhe que faça sua “composition” e o elogio, a moeda de convencimento, é que ele “sabe colocar as vírgulas”, como se saber escrever tivesse a ver somente com a pontuação. O que queria dizer Holden Caufield com aquilo de ser "quite illiterate"? Mais adiante, o que quereria dizer Salinger com aquilo? O quanto de Salinger tinha Caufield? Porque, convenhamos, sempre que um narrador fala sobre escrever a gente já tende a ver o próprio escritor falando como se aquele fosse alter-ego deste.

Mas para chegar onde eu queria, e eu queria falar de Adoniran Barbosa, quero fazer ainda uma rápida digressão, sobre Tiririca. Personagem caricato das eleições desse ano no Brasil, provocou revolta em muitas pessoas por ser, sendo um personagem palhaço, campeão de votos para o Congresso Nacional no maior colégio eleitoral do país, o estado de São Paulo. Acho cedo para esses julgamentos que se ouviram bastante, tipo – “quem votou nele estava tirando sarro da situação política”; ou “os paulistas demonstraram ser pouco politizados elegendo-o”, e etc. Naturalmente que Francisco Everardo Oliveira Silva cria uma expectativa tosca, pois o personagem Tiririca é um completo ignorante que não sabe nem falar direito. Ele fala “pusquê” no lugar de “porque” (ou ele diz “pois que”?) que não sei se é variante em qualquer região do Brasil. Talvez ele nos surpreenda com algum desempenho positivo ante os demais eleitos. Se, por exemplo, ele conseguir falar “porque”, com qualquer som de /r/ já vai nos surpreender a todos. Não se sabe nada desse homem, exceto que já trabalhou com o seu personagem nas principais emissoras de televisão de país, o que não é critério de competência intelectual... Mas minha opinião é que não dá pra dizer nem que ele tem capacidade para ser legislador, nem que não tem, permanecendo uma perfeita incógnita até os dias que se seguirem a posse. A única certeza é que o sujeito de direito, o que foi eleito, e seu personagem, o que recebeu os votos, não são necessariamente a mesma pessoa.

Mas e o Adoniran com isso? E o Holden Caufield? E pra piorar tudo, o Tiririca? Não há semelhanças. Mas talvez haja coincidências. Adoniran Barbosa era personagem do comediante e compositor João Rubinato, um personagem tido por “ignorante”, que “falava errado”, mas que, até onde se sabe, nunca se candidatou a cargo eletivo, o que é bom porque não lhe estragou a bela carreira (já no caso do Tiririca talvez não estrague nada, porque o humor do “abestado” é sofrível...). Era uma constante nas letras de Adoniran Barbosa o eu-lírico acusar-se de ser analfabeto. Diferentemente, entretanto, de Caufield, ele nunca foi criador de uma frase de efeito sobre o assunto. Mas dizia, nas entrelinhas de algumas de suas composições, que era um analfabeto que escrevia, contraditoriamente. Eu sempre me divirto muito com Vide Verso Meu Endereço, principalmente no trecho em que ele diz - "não repare a letra, a letra é de minha mulher". Ora, digam-me, por favor, qual analfabeto nesse mundo teria noção estética da caligrafia?

Além disso, pensando no sentido geral, a letra dessa canção transcende os gêneros (bilhete, carta, letra de música, texto narrado para outro escrever, etc) por qualquer ângulo que se olhe. Tem um excesso de informação metalinguística (informação sobre como se está dizendo quando se está dizendo) que o torna impreciso demais para ser um só gênero. O narrador primeiro diz que está entregando um bilhete, e a reprodução da cena se dá pela fala do narrador entregando o bilhete diretamente ao Seu Gervásio, o intermediário, que deverá entregar o bilhete ao Doutor José Aparecido, o destinatário. Quando começa a cantar (e quem canta é o Seu Gervásio? Ou o próprio Adoniran?), a primeira linha cantada diz “venho por meio dessas mal-traçadas linhas”, isto faz uma referência ao gênero carta, porque se supõe, quando essas eram escritas, que fossem mais formais do que um bilhete. E já na linha seguinte ele emenda “comunicar-lhe que fiz um samba pra você”. Ao mesmo tempo que é carta ou bilhete, é o próprio samba cantado pelo narrador, colocando-se este, em primeira análise, na situação de “autor” do texto. E além de ser cantado como se fosse o texto lido (da carta ou do bilhete), também parece ser uma fala feita de improviso. Por exemplo, quando diz “tinha mais coisas pra lhe contar/ mas vou deixar pra uma outra ocasião”, a palavra “ocasião” provavelmente se refere mais a uma situação de fala, do que a uma situação de escrita (senão ele diria “vou deixar para a próxima carta” ou “para o próximo bilhete”). Dizer que há “marcas da oralidade” ou "hipercorreção" num texto tão elaborado são explicações superficiais, ver-se-á adiante. Ou seja, é evidente que tem marcas de oralidade, e entre elas a hipercorreção na escrita, mas jamais é suficiente num letra como essa esse tipo de interpretação. Há muito mais que isso.

Uma hipótese fraca para explicação da justificativa ao final da letra ("não repare a letra, a letra é de minha mulher") é o da não-contradição, isto é, supor que o “autor” teria efetivamente ditado a carta para a sua mulher e que esta dera grafia ao que ele ditara. Mas será que ela aceitaria escrever, de próprio punho, que sua letra era “mal-traçada” aos olhos de um analfabeto? E alguém ditando isso pareceria mais absurdo que a contradição entre o dito e acontecido, que nesse caso é muito evidente. Aceitar que a mulher escreveu o que ele ditava é certamente mais improvável do que supor, nesse pequeno trecho, que o próprio autor, embora diga que a escrita é de sua mulher, envergonhasse-se de sua letra feia e jogasse essa culpa na esposa. Mas isso também não explica tudo, porque ainda há a falta de definição entre ser bilhete ou carta e samba cantado.

A rigor, o efeito provocado é esse em que, analisando de perto, se sobressai a falta a definição de um gênero específico; a forma imprecisa deixa até a relação entre forma e conteúdo em suspenso. O que é isso, afinal? Não se pode definir se o todo da letra de Vide Verso Meu Endereço é, a uma só vez, bilhete, carta ditada, letra de samba ou conversa de botequim:


Vide Verso Meu Endereço


"Seu Gervásio...
Se o Dr. José Aparecido aparecer por aqui
O senhor dá esse bilhete a ele
Pode lê, num tem segredo nenhum
Pode lê, Seu Gervásio"

Venho por meio destas mal-traçadas linhas
Comunicar-lhe que eu fiz um samba pra você
No qual eu quero expressar toda a minha gratidão
E agradecer de coração
Por tudo que você me fez
Com o dinheiro que um dia você me deu
Comprei uma cadeira lá na praça da bandeira
Ali vou me defendendo
Pegando firme dá pra tirar mais de mil por mês
Casei, comprei uma casinha lá no Ermelindo
Tenho três filhos lindos
Dois são meus, um é de criação
Eu tinha mais coisas pra lhe contar
Mas vou deixar pra uma outra ocasião
Não repare a letra
A letra é de minha mulher
Vide verso meu endereço
Apareça quando quiser


A questão agora é a seguinte - a malandragem dessa letra se deve à falta de capacidade de seu autor de precisar um gênero para “passar a mensagem” ou é proposital? Eu não acho essa pergunta difícil e, pelo menos para mim, a resposta é óbvia. Lembrem que Adoniran Barbosa era personagem humorístico de rádio, e fazer com que o personagem parecesse sofrer de uma grave esquizofrenia linguística, por não saber diferenciar entre bilhete, carta ditada, letra de samba e diálogo oral, teria custado ao autor não só ter uma noção bem precisa dessas coisas, mas também saber como poder transgredir seus limites sutilmente. E João Rubinato, o criador própriamente dito do personagem-compositor Adoniran Barbosa, talvez fosse mesmo meio iletrado, vide sua biografia, mas era capaz de fazer uma letra como Vide Verso Meu Endereço, para um personagem como Adoniran (que precedeu ninguém menos que Chico Buarque de Holanda nas letras de cunho social em que o eu-lírico se assume a partir de lugares sociais desprestigiados). Ser capaz de fazer tudo isso intuitivamente é algo que só é destinado aos gênios.

Eu gostaria de ser tão iletrado quando Holden Caufield. Quero ser metade do ignorante que era o Adoniran Barbosa. Eu, com toda a minha formação acadêmica, em progresso, jamais escrevi nem compus nada que prestasse. Quem será meu personagem? Ou quem será meu autor?


Até a próxima!


Luis Felipe

2 comentários:

Anônimo disse...

Cara... lembrei da gente dando uma pernada e falando do João Rubinato...
Bela análise, irmão, esse blog tá cada vez melhor de se visitar! Será que um dia o Dylan terá uma de suas canções dissecadas por aqui? Não custa sonhar...
Abraço!

Luis Felipe R. Freitas disse...

Hahaha, que coincidência, Cristiano! Ontem mesmo eu ouvi várias coisas do Bob Dylan prestando atenção na riqueza do conteúdo das letras. Acho que terá espaço sim, mas preciso amadurecer bastante as análises, porque as canções em inglês têm, de saída, um aspecto a mais do que as canções em português, que é a questão da tradução. Não que eu ache que eu não tenha condições de fazer, mas é que um texto falando, por exemplo, das letras do Dylan, exige mais elaboração.
Abraço, irmão!