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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Em tempos de mudança

Em tempos de mudança, os bons compositores vão fazer essa música. O blog, que predominantemente procura achar coincidências em músicas de diferentes compositores, que fazem a devida e não necessariamente assumida referência, também precisa se adaptar aos tempos de mudança. E isso significa não se fechar para a influência de fora. Não vivemos numa bolha. Quer dizer, eu acho que eu vivo e sou feliz assim. Mas sei que isso é mentira. A influência de fora é muito significativa e, felizmente, muitas vezes, é significativa no bom sentido.

Mas quem é o compositor de música popular (ou folk, para usar o termo na língua do próprio país de origem dele) mais ouvido, cultuado, às vezes polêmico, a quem se faz referência, de quem se faz versões, de quem se regrava sempre suas músicas? Uma dica, só uma dica – é dos Estados Unidos. Só há uma resposta possível: Bob Dylan.

Não exagero quando digo que há muitas referências, diretas ou indiretas, explícitas ou implícitas, assumidas ou dissimuladas, à obra de Bob Dylan. Eu não arriscaria dizer que ele é um dos compositores mais gravados do mundo, mas pode ser. Eu não poderia enumerar aqui tudo, mas posso citar alguns que gravaram alguma música sua: Jimmy Hendrix, The Rolling Stones, Johnny Cash, Nick Cave, Neil Young, Eric Clapton. Guns'n' Roses, George Harrison, Elvis Presley, só para falar dos mais conhecidos. Sim, a “lista” é grande (ver último link no final da postagem).

Entre os brasileiros, são até comuns versões de canções de Dylan, como Caetano Veloso (versão para It's All Over Now, Baby Blue), que ficou com o título em português de Negro Amor, já regravada por Gal Costa e Humberto Gessinger, que eu lembre, e Knockin' On Heaven's Door ("Batendo Na Porta do Céu") com Zé Ramalho e vários outros; ou gravações diretamente em inglês mesmo, como Jokerman, na voz do Caetano Veloso, de novo. Mas não é só a Caetano que Dylan cantou. Tom Zé e Zé Ramalho são, ou foram em alguma fase, compositores quase estritamente dylanianos, assim como era Raul Seixas, embora se dissesse discípulo de Elvis Presley. E ser dylaniano não é ser limitado, nem tampouco um imitador. Significa ter em alguma das suas composições uma canção cuja letra seja meio falada, e que seja uma grande letra, falando de assuntos sérios. Sempre uma grande letra, em termos de conteúdo, principalmente, mas também em tamanho, muitas vezes. O que é Avohai e Chão de Giz do Zé Ramalho, entre outras, senão composições que fazem referência quase explícita ao estilo de Dylan? E Metrô Linha 743 e Ouro de Tolo, de Raulzito? Mas tem muito mais, sempre, com certeza. Mas como eu sei menos que a metade, e o resto eu ignoro, fiquemos com esses exemplos acima.

No entanto, para forçar um pouco a barra, para variar, eu vou tentar mostrar a referência de Bob Dylan numa música onde isso pode passar despercebido. Também tem bastante disso. E não é por maldade que os compositores fazem isso. Pode ser uma influência, sei lá. Mas nesse terreno do psicológico não entraremos, e nem nos interessa. Interessa, sim, a referência - coisas que podem ser apontadas nas letras.

Pensado justamente nesse tema, o sugerido pelo título da postagem, “em tempos de mudança”, o conhecedor de Dylan certamente poderia me apontar mais de uma música. Mas certamente a principal seria nominalmente The Times They Are A-changin'. E a forçação de barra será encontrar a referência a essa música na canção Ninguém Faz Ideia, de Lenine. Diferentemente daquelas composições que têm o estilo meio falado de algumas composições de Dylan, Ninguém Faz Ideia é o estilo Lenine. Então não é pelo estilo que se faz a referência a Dylan, já descartando de primeira um aspecto, digamos, estético-musical. Onde está a referência, então? Ninguém faz ideia... (brincadeira)

Eu digo que está na letra, e não de uma forma clara. Lenine é um compositor muito inteligente, um dos poucos que tem capacidade de fazer referência em diversos níveis, possíveis ou até imagináveis, explicitamente e não. Cabe ressaltar que ele não necessariamente "fez" essa referência, pois isso pode ser encontrável à revelia do autor. Acontece quando uma coisa é publicada e a interpretação é de quem a faz. Mas vejamos, adiante, o porquê da possível referência nessa música de Lenine.

Para começar, o tema sobre a mudança. Enquanto Dylan precisava dizer, de forma direta, que “os tempos estão mudando”; Lenine procura ir um pouco além, dizendo que, além de os tempos estarem mudando, e nós e o mundo mudando com o tempo, ele sugere que "ninguém faz ideia" do que o futuro reserva. Ou seja, num caso é a mudança que se anuncia presente, no outro, configura-se a mudança na noção que se tinha de futuro, que é cada vez mais nebuloso, pois, se tudo pode ser no futuro, fica difícil imaginá-lo de uma forma só. Outra coisa interessante a se observar na duas letras, como uma coincidência referencial, é a enumeração de tipos sociais, estereótipos, profissionais, que os compositores listam. Dylan se dirige a escritores e críticos, senadores e deputados, mães e pais; e Lenine fala de muitos, muitos tipos, por exemplo, “malucos e donas de casa / vocês aí na porta do bar (...) os que fazem greve de fome (...) os líderes de última hora (...) os exilados, os executivos / os clones e os originais”.

Enquanto a canção de Dylan se inscreve sob o rótulo de canção de protesto, ao mesmo tempo que cria o gênero, convocando as personagens tradicionais da sociedade a perceber a mudança, a não se adiantar no julgamento dos demais, a ser mais acessíveis, a levar os jovens mais em consideração; a grande sacada de Lenine é amplificar a enumeração dos tipos tradicionais enumerados por Dylan. Ou seja, a interpretação para Ninguém Faz Ideia é de que a mudança de que talvez se fale reflete justamente nas identidades, nos papéis sociais. Assim, o compositor cria uma referência não-explícita a um hino da mudança social, The Times They Are A-changin', de Bob Dylan, mas com uma solução criativa de duas mãos – por um lado leva a questão da mudança para além do presente, que tudo muda tanto que acaba que a gente não faz ideia do que está por vir, e por outro, sintagmatiza seus tipos e papéis sociais ora na função de vocativo, ora na função de objeto. Melhor explicando, devido ao refrão ficar repetindo “ninguém faz ideia de quem vem lá”, os papéis desempenhados pelas pessoas nas duas primeiras estrofes os tipos podem ser vocativo (“vocês aí na porta do bar” é o exemplo mais evidente disso), e nas seguintes, quando vai literalmente enumerando tipos que, por mais absurdos que possam parecer, existem mesmo, como em “os tais que traficam bebês” e “o mito que se auto-destrói", faz-se a sugestão de que são justamente estes papéis sociais novos, bons ou ruins, que virão sempre a surpreender-nos. É bastante coisa para se pensar, né?

Como diria Tom Zé, “Bob Dica, diga, Jimy renda-se”, pois os tempos estão mudando, e ninguém faz ideia de quem vem lá.


Até a próxima.


Luis Felipe


Abaixo, link para as letras:

http://www.bobdylanlyrics.net/timchang.html

http://letras.terra.com.br/lenine/119265/

http://wapedia.mobi/en/List_of_artists_who_have_covered_Bob_Dylan_songs

2 comentários:

Anônimo disse...

Velho, excelente... aí, quando tu começou a falar do Lenine também, lembrei da versão do Vitor Ramil pra Gotta Serve Somebody, que em versão brasileira Herbert Richard virou Um Dia Você Vai Servir Alguém, que tem uma letra fantástica, e que é executada e cantada pelo Ramil e pelo... Lenine (ufa, consegui chegar!). E aí lembrei também que talvez o maior criador de "versões" pro Dylan pode ser o Vitor Ramil, e lembrei de apenas algumas, como Só Você Manda em Você (You're a Big Girl Now) e Joquim (Joey)... Mas enfim, tô no plano do achismo, ele pode ser apenas mais um. O teu texto tá fantástico, cara, bem que o Tom Waits e o Paulinho da Viola podiam dar as caras por aqui (não custa tentar, deu certo com o Dylan, hehe). Abraço, irmão!

Luis Felipe R. Freitas disse...

Cris
Se não me engano, o Zé Ramalho é o maior criador de versões, mas com uma diferença em relação a Vitor Ramil. As versões do Zé procuram ser, na medida do possível, fiéis, enquanto que o Vitor sente que tem liberdade para criar a partir do Dylan. Mas no meu caso também é achismo, é só uma impressão de longe. Se olharmos de perto poderemos confirmar qualquer uma das hipóteses. Meu, muito obrigado pela força, e sigo aguardando pelas tuas contribuições mais substantivas (ou para usar a categoria "gramatical" mais adequada, as contribuições em forma de artigo), para quando puderes. Grande abraço, irmão.