Depois de alguns textos que evidenciam um certo conservadorismo patriarcalista, pela própria omissão do fato de que a música feita por homens é música feita por homens, e não toda a música, depois desses dois textos, principalmente, um em que musa vira mulher e mulher vira musa (À musa da música) e outro em que a mulher é objeto de disputa (Disputa-se uma mulher), já passamos da hora de colocar a mulher no papel de protagonista da composição musical.
As mulheres da música, se me permitem fazer uma diferenciação, são as ditas musas. Mas dessa vez quero falar das mulheres na música, isto é, as mulheres que fazem música. Há que se estabelecer, de saída, outra diferenciação entre as chamadas “divas da música”, uma designação carinhosa para as intérpretes (cantoras) e as compositoras propriamente ditas. A mulher compositora, visto essa condição patriarcal que custamos a superar, é sempre uma revolucionária.
Tivemos, sim, Chiquinha Gonzaga. Tivemos, mais tarde, Nara Leão. Temos atualmente Ana Carolina. Entre muitas outras sobre as quais não vou me estender. Mas é reconhecível que, mesmo que elas sejam muitas, quando colocadas em lado e proporcionalmente aos homens, mulheres compositoras são exceções. Por alguma razão não declarada, há muito mais homens compositores do que mulheres. Eu não sei o porquê disso e nem vou arriscar interpretações sobre tal dado da realidade. Só posso dizer que, diferente da política, onde precisa haver uma regulação para que os partidos tenham uma quantidade proporcional de mulheres e homens, a produção artística não se sujeita a esse tipo de regulação. A produção artística é o terreno da liberdade e da criação. Enfia-se nesse meio quem quer, e não há restrições assim como não há exigências.
Não estou dizendo que, por não haver restrições seja “fácil” de se entrar ou de se manter nesse meio. Eu não disse isso. São coisas bem diferentes. Mas digo que a música popular é um espaço onde qualquer um com alguma voz, um instrumento, talvez até menos que isso, pode se colocar e arriscar uma carreira.
A musa da vez, que não é musa, mas é compositora, e por ter sido compositora tornou-se musa, num certo sentido (e também cantava), a quem dedico essa postagem, é Dolores Duran.
Para os que curtem essa coisa de artista extremado que vive loucamente e morre jovem (cujos exemplares sempre citados na cultura brasileira americanizada são Janis Joplin, que morreu aos 27, Jimi Hendrix, também aos 27 e Jim Morrison, 28), Dolores Duran já foi revolucionária por se adiantar aos americanos em cerca de duas décadas nesse rito de viver intensamente para se tornar mito. Claro, antes de todos vieram os poetas românticos do século XIX, mas o assunto aqui é música. Dolores Duran morreu aos 29 anos de idade em 1959. Apesar de ter problemas de coração, fumava cerca de três carteiras de cigarro por dia e bebia, segundo Ruy Castro, em seu livro Chega de Saudade, “como se a reserva alcoólica do planeta fosse acabar no dia seguinte". E amou. E sofreu.
Dolores Duran, cujo nome era Adiléia Silva da Rocha, em sua breve passagem pelo universo que ficou conhecido como o movimento Bossa Nova na década de 1950 no Rio de Janeiro, conseguiu, apesar da origem mais ou menos humilde, com sua musicalidade e capacidade para cantar em várias línguas, impressionar o próprio diplomata e poeta Vinícius de Moraes, que acabou lhe cedendo o parceiro Tom Jobim para que ela fizesse a letra de Por Causa de Você, uma das mais lindas canções co cancioneiro jobiniano, que foi gravada em inglês por Frank Sinatra, traduzida como Don't Ever Go Away.
A parceria de Tom Jobim com Dolores Duran rendeu peças musicais preciosas. Mas como este texto se propõe a falar de música feita por mulheres, Dolores Duran é uma boa escolha e a visita de Tom, Vinícius e Frank termina aqui mesmo. Claro, poderia falar de várias outras, com Maysa, Sylvinha Telles, Nara Leão, acima citada, ih... cada uma delas mereceria não só uma postagem de um blog, mas um blog inteiro. Uma vida inteira para pesquisar a riqueza de suas obras.
Mas escolhi Dolores para começar. Acho que fiz essa escolha porque tem coisas muito marcantes em sua obra. A troca de Adileia pelo nome Dolores, por exemplo, para tornar-se conhecida como uma compositora que cantava as suas dores, que transformava em música esse quê inapreensível, esse lado intangível – e doloroso – da vida, revela um traço de genialidade poética. Isso de fazer fundir vida e obra, coisas geralmente tão separadas, é algo de quem não entendeu bem a vida na sua mediocridade cotidiana, mas viveu genialmente a poesia, viveu o drama, viveu a tragédia da existência humana.
É coisa de poeta em sentido extremado, não é o poeta hesitante que “finge que é dor a dor que deveras sente”, citando Pessoa. Não sei dizer poeticamente, mas acho que é diferente. É um poeta que se entrega e sucumbe ao excesso, que traz consigo todos os sentimentos do mundo, parafraseando Drummond (ó os homens aí de novo... tenho que ler mais poesia de mulheres, para aumentar meu repertório). Só o que eu queria dizer é que uma das maiores expoentes desse tipo de artista, na música brasileira, é Dolores Duran.
Castigo (Dolores Duran)
A7+ Bm7
A gente briga
D/E E7 C#m7
Diz tanta coisa que não quer dizer
F#m7 Bm7
Briga pensando que não vai sofrer
E7 A7+
Que não faz mal se tudo terminar
A#° Bm7 E7 C#m7
Um belo dia a gente entende que ficou sozinha
F#m7 Bm7
Vem a vontade de chorar baixinho
E7 A7+
Vem o desejo triste de voltar
A#° Bm7
Você se lembra
E7 C#m7
Foi isso mesmo que se deu comigo
F#m7 Bm7
Eu tive orgulho e tenho por castigo
E7 G/A A7
A vida inteira pra me arrepender
D#7/5- Dm7 C#m7
Se eu soubesse naquele dia o que sei agora
Cm7 Bm7
Eu não seria essa mulher que chora
E7 A7+
Eu não teria perdido você
Até a próxima!
Luis Felipe
P.S. Uma dica para quem não conhece a música e quer conhecer, é o CD Amores e Boleros 2, da intérprete Tania Alves (aquela mesma que também é atriz). A versão de Tania Alves é mais contemporânea do que a original da Dolores, mas é difícil de encontrar (minha mãe tem esse CD, hehe). Link para Dolores no youtube:http://www.youtube.com/watch?v=IreFEnvyc1o&feature=player_embedded
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