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terça-feira, 28 de setembro de 2010

É fogo, mora!?

Vitor Ramil bebeu da fonte da Jovem Guarda. O diálogo que ele estabelece, por exemplo, em sua composição Não É Céu com Quero Que Vá Tudo Pro Inferno, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, renderia uma análise riquíssima. A análise riquíssima, que alguém aí pode ser capaz de fazer, o cifraamodaantiga vai ficar devendo. Sempre. O dever em primeiro lugar. Mas existem condições genuínas, aqui, de se apresentar análises modestas – um cara falando de música e de letras de música como numa conversa com os amigos no bar, sem rigores e preocupações maiores.

A questão da autoria é, cada vez mais, uma coisa complicada e delicada. Sobre a questão da originalidade, levaria o resto do ano para ser discutida. Não existe originalidade absoluta e ponto final. Mas por que precisaria do resto do ano para discutir se isso é intransigível? Porque entre não haver originalidade absoluta possível e as sutilezas do que se cria e parece novo, aí sim, bem nesse espaço do vácuo entre o já-existente e o que não o é ainda, reside um universo de possibilidades. Tudo parte de alguma coisa e tudo faz parte de alguma coisa. No mínimo, as questões relacionáveis ao meio onde cada obra é produzida criam limites que não permitem com que uma obra criada nesse meio seja extremamente original.

A obra sofre dessas restrições, sim, da ordem do espaço (meio) do tempo (contemporaneidade) e da cultura (o que se produz no mesmo tempo e no mesmo espaço). Também se fala muito, em música, em “influências”. Mas as influências, os músicos que um compositor ouvia ou mesmo queria imitar, não necessariamente aparecem na obra deste. Isso só vai ter importância na biografia, o que não nos interessa agora. O que aparece e pode ser sublinhado são as “referências”, explícitas ou implícitas. Não existe música, estilo musical, etc, que não remeta, em maior ou menor medida, a outras músicas, estilos musicais e etc. Até quando são diametralmente opostos, fazem referência, justamente de oposição. Os pobres dos compositores deveriam, então, estar desolados devido a essa prisão que lhes impossibilita a originalidade? Não acho. Essas “restrições” significam somente que se está fazendo parte de alguma coisa maior que já existe, e isso na verdade é consolador. É isso que possibilita qualquer produção, até as que se propõem a mudar paradigmas na história.

É nesse ponto, justamente, que se diferenciam uns compositores de outros. Porque há compositores e compositores. São mais "espertos", pode-se dizer, os autores que sabem reconhecer e fazer diferentes formas de referência ao que veio antes de si e que estes, em certa medida, re-produzem. Não importa se fazem isso conscientemente ou intuitivamente, porque isso é um caso de gênio criativo. O que importa é que há os que fazem referência à referência: eis o lugar do deleite de quem analisa, por exemplo, letras de música para além das imagens tradicionais de rima, contagem de sílaba, aliteração, entre outras. Esse é o caso desses caras aí de quem este texto está tratando.

Por uma questão de ordem cronológica, Quero Que Vá Tudo Pro Inferno, evidentemente, vem muito antes. E, de certa forma, marca uma geração (um pouco anterior à minha, diga-se de passagem). Não vou falar do questionamento que se fez de música não-engajada numa época em que a palavra questionadora no seio da produção artístico-musical podia ser considerada subversiva. Quero Que Vá Tudo Pro Inferno é uma forma de alienação assumida e isso nem precisa se discutir. Mas, vejam bem, não foi uma “alienação” relacionável à vida política. É uma canção romântica e, nesse sentido, sugere uma alienação em relação a tudo mais que não a seja a musa que poderia aquecer o poeta no inverno. Esse "tudo", inclusive, está no título.

É justamente com o fato da composição de Roberto e Erasmo se tratar de uma canção romântica (e sensual!) que Vitor Ramil dialoga. Não estou dizendo que ele fez Não É Céu para “responder”, plagiar, satirizar, parodiar, arremedar ou qualquer coisa que fizesse associar explicitamente uma canção a outra. Nada disso. Essas músicas nem são em nada parecidas. Trata-se, não de uma relação ética conflituosa entre compositores, se tem alguém que pensou esse tipo de coisa, trata-se de uma referência, com marcas características encontráveis aqui e ali na letra, quiçá na própria música, o que seria mais um caso de “homenagem”. A referência é uma homenagem, mesmo quando não muito elogiosa. A relação entre essas duas letras é muito sutil, mas depois que observada com a lupa do entendimento do processo composicional (levando em conta principalmente a questão da referência aos mestres antecessores) parece evidente.

Observem, na relação de oposição ou complementaridade, nessa ordem, que existe entre se perguntar “de que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar?”, e se replicar dizendo que “não, não é céu sobre nós”. E entre se dizer “quero que você me aqueça nesse inverno” e “fica comigo, me abraça que calor melhor a rua não dá”. É disso que estou falando. Que alguma coisa tem a ver.

Outra referência muito interessante, ao mesmo tempo que um tanto dissimulada, é ao próprio dito atribuído justamente a Roberto Carlos no programa Jovem Guarda da TV Record dos anos 60, a expressão que se cristalizou e se disseminou – É uma brasa, mora!

Ramil brinca com essa expressão dizendo, em sua letra - "é fogo, mora/ gente na brasa a gritar lá fora/ só nos falta Nero cantar". E mais adiante -"é fogo, mora/ deixa essa brasa lá fora/ deixa o mundo todo queimar".

Outras partes das duas letras não teriam muita relevância para se falar de referência, portanto não as citarei. Exceção feita à genial sacada em "fica comigo me abraça, que calor melhor a rua não dá", ao mesmo tempo que o mundo lá fora está incendiando. É preciso ser mais explícito quanto ao sentido possível de "calor melhor"? O calor do fogo pode ser maior, mas o calor do abraço dos amantes é, sem dúvida, melhor.

Além disso tudo que foi dito que já convenceu - pelo menos a mim - do que eu mesmo estou dizendo, a canção de Vitor Ramil explora a ideia de sensualidade também musicalmente, e não só textualmente na letra, como acontece na canção de Roberto e Erasmo. Há em Não É Céu uma batida de contrabaixo que imita batida de tambores rituais do mítico "sacrifício das virgens" na era pré-civilizada, aquele saxofone meio hipnótico num crescendo em direção ao grand finale, há um mundo queimando lá fora apocalipticamente, e isso é de uma sensualidade tal, mais do que romance de passear de mãos dadas que as músicas da Jovem Guarda sugerem. Não que isso seja problema. Essa inocência nas canções do ie-ie-ie as constitui, e mesmo isso tem exceções, de que falaremos eventualmente. Mas em Não É Céu parece haver uma sensualidade sensual, se mais que uma redundância isso possa fazer sentido. “Dia nascendo normal e a gente acorda e não costuma gritar” diz o amante que goza aos berros, mais ao final da letra de Ramil, numa interpretação (minha) cheia de segundas intenções para o sentido da letra.

E quem não conhece ainda, está esperando o que para conhecer a canção do Vitor Ramil? É um manual de sobrevivência dos amantes, no caso de o mundo amanhecer incendiando...

Até a próxima.

Luis Felipe


Um comentário:

Roberto Freitas disse...

A percepção do crítico é algo tão profundo, e sutil, que a maioria dos mortais, como eu, jamais enxergaria tanta coisa em duas músicas. Vou passar a observar mais as letras das músicas para não perder tanta riqueza. Papai.