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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Doces damas das camélias



O que tem a ver uma música da safra romântica do Roberto Carlos, um filme de Holywood que se passa em Las Vegas com o Nicholas Cage fazendo o papel de uma alcoólatra terminal, um romance francês do século XIX escrito pelo escritor francês Alexandre Dumas Filho, e uma clássica balada da banda inglesa The Police?

Aí é que está. É difícil se falar em aspectos autobiográficos quando se analisa a obra de um artista. A rigor, a obra é a obra, e isso não tem necessariamente a ver com a vida do artista. Se há artistas que misturam? Sim, há. Mas isto está longe de ser regra, muito mais provavelmente é a exceção. Dizer, por outro lado, que eventos da vida vão ter alguma influência sobre a obra, é outra coisa. Mas quase tudo é possível.

Caso alguém ainda não tenha respondido à pergunta inicial, eu dou a resposta: essas quatro obras têm em comum o fato de que o protagonista, ou o eu-lírico, no caso das canções, apaixona-se por uma cortesã, isto é, uma prostituta. Eu li em algum lugar, e a pessoa que escreveu jurava de pé junto, que Dumas escreveu A Dama das Camélias como uma forma de testemunho autobiográfico. Não posso dizer nem que sim, nem que não. Posso dizer, isso sim, que tal obra tem elementos notórios do Romantismo, e para quem não sabe romantismo nem sempre quer dizer paixonite, namorico, etc. O Romantismo, na literatura, é o período que reúne obras em torno de um estilo mais ou menos similar, porque tiveram influência da época - a transição do feudalismo para o capitalismo - e que daí se dizia que a cidade era degradante e o campo edificante. Uma série de coisas marcaram cerca de dois séculos do Romantismo na Europa: o êxodo rural e a formação das metrópoles, a decadência de monarquias e a ascensão da burguesia, e principalmente uma sensação de deslocamento que estava apenas começando.

O protagonista de A Dama das Camélias, Armand Duval, justamente, vai para a cidade – Paris - e conhece a cortesã Marguerite Gautier, por quem se apaixona. O romance (de amor) dentro da obra romântica (do período) existe, sim. Mas não é necessariamente mais nem menos romântico, no sentido mais popular do termo, do que outros períodos de outros estilos literários. Simplesmente, pelo conjunto de obras que se analisa se poderá dizer que, de modo mais ou menos predominante, em determinada época, na visão daqueles autores, casava-se mais por conveniência social do que por amor, ou vice-versa. Jane Austen, por exemplo, autora e alcoviteira da Inglaterra pré-capitalista, mostra em suas obras que os casamentos eram arranjados para servir à conveniência tanto da noiva quanto do noivo. E mesmo assim tem amor de sobra na obra da obra de Jane Austen, para quem quiser se divertir e se encantar com obras literárias que têm romance (de amor) sem ser românticas (do período).

Também posso dizer que A Dama das Camélias é uma obra que vale a pena ser lida. A ópera La Traviata de Giuseppe Verdi é uma releitura da obra de Dumas, o que só comprova seu impacto como uma narrativa fundamental na cultura literária (e musical, a partir da ópera). Mas também vale a pena ler, antes, Manon Lescaut de Abade Prévost (que também virou uma ópera, homônima, composta por Giacomo Puccini) e que, ao que parece, fez começar essa tradição das narrativas de alguém que se apaixona por uma mulher de conduta suspeita, que culminou com a polêmica e genial obra-prima de Gustave Flaubert, o romance Madame Bovary, cuja heroína e protagonista é uma mulher à frente de seu tempo que não pode ser comparada às outras, e que acabou virando filme muitos anos mais tarde. E dessa tradição, que provavelmente tem muito mais obras, eu aponto quatro que são da maior relevância: o próprio A Dama das Camélias, romance de Alexandre Dumas Filho; Leaving Las Vegas, filme com Nicholas Cage e Elizabeth Shue, dirigido por Mike Figgis e baseado num romance de John O'Brien (também acusado de fazer obra autobiográfica); Falando Sério, canção eternizada na voz Roberto Carlos e composta por Maurício Duboc; e Roxanne, canção da banda The Police.

O filme de Figgis é o máximo. O máximo em se falando de um amor ultra-romântico. O personagem de Nicholas Cage é um roteirista de cinema alcoólatra que, depois de ser despedido por não conseguir mais dar conta do trabalho em virtude do vício, decide ir para Las Vegas para se despedir da vida bebendo (e por isso o título é Despedida em Las Vegas). Nisso, ele acaba “esbarrando” na prostituta que é a personagem vivida pela bela Elizabeth Shue. Como ela é uma pessoa sem amor-próprio, e por isso é prostituta, na tese do filme, e ele também não tem amor-próprio, e por isso é escritor, digo, alcoólatra, suas duas almas inúteis e perdidas acabam se encontrando uma a outra. Eu encontrei o trailer no Youtube (vi o filme umas duas vezes há uns vinte anos) e achei que, pelo teaser, parece um filme leve e divertido. Mas o trailer engana, trata-se de um filme denso, de um relacionamento quase impossível e de um amor dolorido, em todos os sentidos.

As canções, diferentemente do romance e do filme, são construções bastante mais modestas, em termos de narrativa. Mas aí que é bom – a letra de música, como a poesia em geral, deve ser concisa e breve, trazer uma grande dimensão narrativa, se for o caso, na ligeireza de uma enunciação, num sopro de fala. Nas duas canções, coincidentemente, o eu-lírico dirige-se à mulher da (sua) vida. Em Roxanne não há dúvidas quanto a essa interpretação que diz que a mulher é, como se diz, da vida fácil. Canta-se “you don't have to sell your body through the night (...) you don't have to walk the streets for money”. Claro, a menos que se pense que vender o corpo pela noite e caminhar nas ruas por dinheiro seja outra coisa. Em Falando Sério essa questão da amada e interlocutora do poeta ser uma garota de programa é quase sutilmente sugerida na estrofe em que se canta “falando sério / eu não queria ter você por um programa / e apenas ser mais um em sua cama / por uma noite apenas e nada mais”.

Aliás, o apaixonado por Roxanne, pelo que se diz na letra, parece já ter tido progressos em “reabilitar” a moça, quando diz “those days are over”. Mas ele tem que voltar a lembrá-la de que ela não precisa vestir o vestido vermelho, usar a maquiagem pesada e compartilhar seu corpo com os habitués de determinados arredores de Westminster at night, porque parece que ela gosta de se dedicar ao trabalho. A letra de Roxanne é um choramingo dele nesse sentido; ele diz “you don't have to put on the red light” que é uma frase ambígua, mas que não salva a reputação dela de forma alguma.

E se, por um lado, em Roxanne, o poeta apaixonou-se antes, imprecisamente, mas no passado (“I've loved you since I knew you”); por outro, em Falando Sério o eu-lírico parece estar se apaixonando naquele momento. Canta-se “por uma noite apenas e nada mais”. Perguntamos – é a primeira noite dele com ela? A última? Não necessariamente. Falando Sério é uma narrativa um pouco mais complexa e menos clara do que Roxanne; em alguns momentos da letra parece haver uma rotina de encontros (“é bem melhor você parar com essas coisas / de olhar pra mim com olhos de promessas”) e em outros, o eu lírico parece apegar-se ao momento desse encontro como se fosse a única vez (entre nós dois tinha que haver mais sentimento / não quero seu amor por um momento / e ter a vida inteira para me arrepender).

Ah, eu já ia esquecendo de outro filme que tem mais ou menos uma história parecida: Uma Linda Mulher, com Julia Roberts e Richar Gere. Nãããão, melhor seria nem ter lembrado mesmo. A diferença? Uma Linda Mulher é inspirado numa fábula como Cinderela, é um mamão-com-açúcar perto de Despedida em Las Vegas e das outras histórias: não é uma narrativa densa feita de Romantismo e realidade!


Os links:

Falando sério
http://letras.terra.com.br/roberto-carlos/77139/

Roxanne
http://letras.terra.com.br/the-police/31174/

Até a próxima!

Luis Felipe

sábado, 25 de dezembro de 2010

Adoráveis cafajestes

Dizem por aí que mulheres adoram cafajestes. Eu não sei se é verdade ou não porque não sou nem mulher nem cafajeste. Pelo menos não completamente, se é que me entendem. Acho que já fui (cafajeste, quem nunca foi alguma vez?), mas não vem ao caso. E também existe mulher cafajeste. Mas a questão aqui é outra, ou pelo contrário, a mesma; a que predomina no blog – letra de música. E letra de música em que o eu-lírico se assume cafajeste tem de dois tipos básicos: as mais explícitas e as muito sutis. Tomemos, por exemplo, Disritmia, do Martinho da Vila; é explicitamente uma manifestação poética em que o poeta é um cafajeste assumido. No refrão, ele diz “vem logo, vem curar teu nego / que chegou de porre lá da boemia”. Cara de pau! Mas é uma cara de pau necessária. Vejam que letra, que “recantada”:

Disritmia


Eu quero me esconder debaixo
Dessa sua saia pra fugir do mundo
Pretendo também me embrenhar
No emaranhado desses seus cabelos

Preciso transfundir seu sangue
Pro meu coração que é tão vagabundo
Me deixe te trazer um dengo
Pra num cafuné fazer os meus apelos

Eu quero ser exorcizado
Pela água benta desse olhar infindo
Que bom é ser fotografado
Mas pelas retinas desses olhos lindos

Me deixe hipnotizado
Pra acabar de vez com essa disritmia

Vem logo, vem curar seu nego
Que chegou de porre lá da boemia


E a mulher pensa “é cafajeste, mas é poeta”! Pior são as que cedem aos encantos dos cafajestes (quais encantos?) que nem poetas são e nem têm nada de especial para oferecer. Em Disritmia o poeta chega com aquele palavreado fantástico que, se não estou errado, fala ao universo feminino, e fala no ouvidinho que se escuta pelo coração sensível, e ele passa de sem-vergonha e canalha a sujeito frágil e sensível (“quero me esconder debaixo / dessa sua saia pra fugir do mundo”). Tadinho, tão frágil e tão sensível que foge da tarefa de enfrentar a sua natureza cafajeste. E a mulher compreende. E perdoa.

Tem duas canções, além dessa acima, em que o atestado de eu-lírico cafa é dado mais sutilmente, mas de modo igualmente poético ou mais. Até pode haver outras, mas eu vou nessas agora. O eu-lírico não precisa dizer “voltei de porre da boemia” tão diretamente. E o que será que rolou nesse porre? Na canção O Portão, do Roberto Carlos, fala um cafajeste que se ausentou por bastante tempo. Foi, talvez, viver a promessa de um outro amor:


O Portão

Eu cheguei em frente ao portão
Meu cachorro me sorriu latindo
Minhas malas coloquei no chão
Eu voltei

Tudo estava igual como era antes
Quase nada se modificou
Acho que só eu mesmo mudei
E voltei

Eu voltei agora pra ficar
Porque aqui, aqui é meu lugar
Eu voltei pras coisas que eu deixei
Eu voltei

Fui abrindo a porta devagar
Mas deixei a luz entrar primeiro
Todo meu passado iluminei
E entrei

Meu retrato ainda na parede
Meio amarelado pelo tempo
Como a perguntar por onde andei
E eu falei

Onde andei não deu para ficar
Porque aqui, aqui é meu lugar
Eu voltei pras coisas que eu deixei
Eu voltei

Sem saber depois de tanto tempo
Se havia alguém a minha espera
Passos indecisos caminhei
E parei

Quando vi que dois braços abertos
Me abraçaram como antigamente
Tanto quis dizer e não falei
E chorei


Claro que pode aparecer alguém para dizer que a biografia do Roberto Carlos não necessariamente justifica essa interpretação, e que no caso dele essa música pode até ter a ver com a relação entre ele e os pais, no capítulo do retorno à casa dos pais. Mas eu não estou falando dos autores e muito menos das vidas deles. Estou falando, isso sim, do que pode ser interpretado a partir das letras, e para tanto eu me refiro ao poeta ou ao eu-lírico, jamais ao autor (e poeta nem sempre quer dizer a mesma coisa que o autor).

Então, neste sentido, a mesma coisa que vale para Disritmia vale para esta última; só que em O Portão o poeta passou muito mais tempo longe, o suficiente para o retrato na parede amarelar, e não foi somente uma noitada. Ah, obviamente, e mesmo que todo mundo tenha percebido eu ainda posso mencionar; em Disritmia o poeta dirige-se à mulher; em O Portão o poeta conta a história do seu retorno. Mas tudo bem, eu admito que há uma diferença maior ainda: na canção do Roberto nos fica a dúvida se é uma letra de cafajeste ou não.

A melhor evidência é “dois braços abertos”, que sugere que sejam de uma pessoa somente, e de uma mulher, infere-se. A menos que esteja subentendido que “dois” sejam dois pares de braços, aumentando o número de braços para quatro, e há quem argumente que não seria preciso dizer “dois braços” para dizer um par de braços porque isso é o que se espera numa pessoa nascida sem problemas anatômicos, e que o “dois” tenha um valor significativo combinado com um termo que está elíptico (os dois pares), para justificar a interpretação de retorno à casa dos pais. Mas, eu hein... Que discussão sem futuro. É letra de canalha e pronto, e que resolveu voltar para a mulher depois de uma longa aventura fora. Inclusive, no verso "meu retrato ainda na parede", há uma pista a favor do meu argumento. Não se imagina que os pais tirariam das paredes ou das estantes da casa os retratos de um filho desgarrado; uma mulher magoada pelo homem que a abandonou, sim. Tudo isso está sendo dito pelo "ainda".

A outra canção de que quero falar é a mais discreta das três. Curiosamente, ela tem elementos das duas músicas acima. Outra curiosidade é que há quem não aceitaria de forma alguma o argumento de que é uma letra de cafajeste porque o autor, Lô Borges, é um pacato bom menino mineiro. Novamente há que se excluir o autor, pois não falamos dele. Estou falando daquela belíssima canção, Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor, que tem um progressão (ou regressão) harmônica cheia de cromatismos nos bordões. Tá, é uma progressão num cromatismo descendente, e é isso que provoca um efeito musical de melancolia nessa canção. Mas introduzo o argumento da letra de cafajeste fazendo relação com trechos das anteriores. Quando se diz, nos primeiros versos de Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor, “cheguei a tempo de te ver acordar / eu vim correndo à frente do sol”, isso significa passar pelo menos a noite fora, como no refrão de Disritmia, apenas dito um pouco mais metaforicamente.

Há uma coincidência também entre Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor e O Portão, em um trecho importantíssimo das letras, em que o poeta-cafa, antes de entrar, para e pensa no que vai dizer, e se vale a pena: Em O Portão se diz: “fui abrindo a porta devagar / mas deixei a luz entrar primeiro / todo o meu passado iluminei / e entrei”. E iluminar o passado é conferir-lhe brilho; isto é, se o passado se ilumina nesse instante de derradeira hesitação é porque vale mesmo a pena voltar. Em Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor, diz o poeta: “abri a porta e antes de entrar / revi a vida inteira / pensei em tudo que é possível falar / que sirva apenas para nós dois”. É aí, nesse “que sirva apenas para nós dois” que ele se entrega ao meu argumento. Porque o que “serve apenas” é exceção, nunca regra. E se a regra é a fidelidade monogâmica e um jamais deixar o outro; então o poeta cafajeste vai argumentar que, especificamente, há de se considerar uma exceção para ele.

Qual a exceção? Tcharã! Há coisas que a simples moral não compreende, e por isso ele diz “pensar além do bem do mal”, porque um marinheiro (será?), que eventualmente pode ceder a “desejos de cais”, pelos portos por que passa, pode argumentar que essa dura realidade ("o mundo lá sempre a rodar / em cima dele tudo vale") não precisa afetar o sagrado universo do casamento:

Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor

Cheguei a tempo de te ver acordar
Eu vim correndo à frente do sol
Abri a porta e antes de entrar
Revi a vida inteira

Pensei em tudo que é possível falar
Que sirva apenas para nós dois
Sinais de bem, desejos de cais
Pequenos fragmentos de luz

Falar da cor dos temporais,
de céu azul das flores de abril
Pensar além do bem do mal
Lembrar de coisas que ninguém viu

O mundo lá sempre a rodar
Em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor
Estrada de fazer o sonho acontecer

Pensei no tempo, e era tempo demais
Você olhou sorrindo pra mim
Me acenou um beijo de paz
Virou minha cabeça

Eu simplesmente não consigo parar
La fora o dia já clareou
Mas se você quiser transformar
O Ribeirão em braço de mar

Você vai ter que encontrar
Aonde nasce a fonte do ser
E perceber meu coração
Bater mais forte só por você

O mundo lá sempre a rodar
Em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor
Estrada de fazer o sonho acontecer


Depois que o poeta argumenta tudo aquilo, portanto, a amada acena um beijo de paz. Não quer briga, talvez sinta saudades ou tenha outros desejos. E assim a situação vira completamente a favor do cafa. Ele, que chega pouco antes do sol nascer - cheio de explicações - é que acaba por ter o poder de satisfazê-la. Talvez ela até queira que ele dê satisfações depois. E todo mundo sabe, satisfazer e dar satisfações são coisas completamente diferentes. Mas agora, com algum gesto, um aceno, ela “vira a cabeça” dele porque quer dele primeiro a satisfação mais primitiva. Que trunfo na mão!

Trunfo porque dependendo que ele disser ou fizer agora, ou põe tudo a perder ou ganha o céu. E a partir daquela sentença condicional vagamente suspeita de ser uma metáfora sensual (“se você quiser transformar / o Ribeirão em braço de mar”) ele faz a “recantada”, dizendo as palavras mais doces e românticas que a mulher já ouviu: “você vai ter que encontrar / aonde nasce a fonte do ser / e perceber meu coração / bater mais forte só por você”. E tudo está salvo...

Porque um homem, digamos, “normal”, conquista a mulher uma vez e quer tê-la como sua pela vida inteira, e não acha que corre o risco de perdê-la porque ele é, em tese, o melhor “produto” para um relacionamento – o homem certinho, direito, fiel. O cafajeste, por outro lado, sempre na corda bamba, precisa reconquistar a mulher constantemente, pois mesmo que ela não saiba de nada, as culpas o atormentam. E talvez seja por isso que as mulheres, caso isso se aplique a alguém de verdade, acabam preferindo os cafajestes. É que elas adoram as “recantadas”, e quanto mais poéticas, melhor.


Até a próxima!

Luis Felipe



Links para as canções no Youtube:

Disritmia:

http://www.youtube.com/watch?v=MF4UsW4--sM&feature=fvst

O Portão:

http://www.youtube.com/watch?v=zbOuI5hv2yo

Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor:

http://www.youtube.com/watch?v=1BGxHfV7TWw&feature=player_embedded


P.S. O moço do retrato, para quem não sabe, é o ator Clark Gable, do clássico norte-americano O Tempo e o Vento. O seu bigode ficou conhecido como “bigodinho de cafajeste”, por alguma razão.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Rodinha de violão e festas de final de ano

Primeiro pensei em chamar este texto de “Porque eu odeio rodinhas de violão e festas de final de ano”. Depois pensei que, apesar da conjunção aditiva, por um lado, a ordem linear sintagmática não garantiria a explicativa na dimensão de cada coisa. Só não gosto quando acontecem juntas, e sob determinadas circunstâncias desfavoráveis. Mas ainda tentando escrever um título decente para a postagem, fui reformulando, troquei o “e” por “com”, por “em”, e fui parafraseando, para enfim me dar conta que não tinha jeito, o efeito era sempre ruim e sempre soaria mal humorado. O mal humorado da turma. Não sou isso. Pelo menos nem sempre.

Claro que fica parecendo um pouco aquele programa Cilada, o episódio Festas de Final de Ano da Firma, no momento em que lá pelas tantas um dos “colaboradores” da empresa, bebaço, pega um violão e começa a tocar o maior hit do Wando (“você é luz, é raio, estrela e luar...,”) para ver se consegue alguns sorrisos, alguns aplausos e finalmente uma história com a loirinha nova que chegou para o setor da contabilidade. Eu hein... Programa muito brega falando de uma situação mais brega ainda e com a trilha sonora em questão... eu fora!

Eu nunca fui de me escalar para tocar nas tais festas. Sou tímido. E acho que canto mal (mas pelo menos dizem que eu toco razovelmente bem – ufa!). Mas dessa vez, assim como no ano passado, embora em um trabalho diferente, fui intimado a tocar na festa de final do ano. Que situação...

Aí que me vem toda a memória ruim das tais “rodinhas de violão” em festas com bastante gente, e muita gente que não conhece você direito. Porque é complicado mesmo. Quem toca alguma coisa sabe. Considerando a carência de educação musical que assombra nossa população, as pessoas não sabem que os músicos, como membros de, digamos, um específico grupo social – os artistas - fazem a sua arte para se expressar. Mas este, em si, não é o problema. O problema é que as pessoas acham que porque você toca violão você é capaz de tocar qualquer coisa, como se você fosse um aparelho de CD Player, MP3 Player, e etc – basta apertar o play.

Mas o pior são os pedidos. Porque desde os mais modestos “tocadores de violão” até os mais sofisticados violonistas, geralmente, têm seu repertório. Mais complicado é quando você tem um repertório, mesmo se vasto, elegante ao seu gosto, e a plateia lhe pede –“ toca aquela do Tomás Chocado e do Vilso Frido, A Reta Abunda”. Pelo menos o título da “canção” indica como vai ficar a sua cara...

E não adianta. Eu tenho amigos de vinte anos (de vinte anos de amizade) que dizem que eu toco de tudo. É mentira. Eu toco meia dúzia de músicas. Eventualmente me interesso por uma ou outra e tento tirar. E duvido que tenha alguém que toque de tudo e toque bem. É possível tocar de tudo de qualquer jeito. Mas é uma prostituição, de alguma forma.

Os músicos que tocam em bar procuram agradar a plateia. E entre músicos mais metidos a besta existe a discussão sobre o que tocar. Mas os que ganham algum dinheiro tocando de tudo estão certos, eu acho. Querem viver de música. Eu também gosto de ir num bar onde tem alguém cantando e tocando bem um repertório variado, se adequado ao meu gosto. Já vi músicos de bar que carregavam pastinha de repertório, com cifras, às vezes pegando músicas meio que de improviso. Isso é possível. Mas não é verdade.

Não é verdade no sentido de que isso seja uma manifestação artística – está mais para uma manifestação mecânica, pois o artista, cada vez mais, para agradar a um público aleatório tem que se parecer com a máquina, como o CD Player, ou qualquer outro player. Mas nem todo mundo que toca gosta disso. Muitos gostam, na verdade, de tocar seu repertório. Tomem como exemplo os artistas de renome. Eles tocam seu repertório, inclusive emitem para a imprensa, em caso de shows grandes, uma lista de provável repertório. Porque eles ensaiam aquelas canções, talvez até trazendo algo novo nos arranjos. E talvez sejam artistas de renome porque não se abriram demais a pedidos. Não tenho certeza. Mas um músico se apresentando não é, jamais, um aparelho de reprodução. É, na verdade, um ser humano, sujeito ao erro, e que se prepara para o evento, considerando seus limites (cansaço, memória, disposição, etc) e que se apresenta porque gosta do que faz, e não porque "tem que" fazer.

Por isso que não gosto muito das rodas de violão. Gosto de me apresentar, até, para públicos pequenos, de gente educada, para poder direcionar a minha apresentação para o repertório que eu escolher, porque o tenho mais ou menos bem ensaiado. E até composições próprias, que embora possam ser canções modestas, eu me orgulho de mostrá-las. Às vezes.

Para a semana que vem, no meu trabalho, pediram-me para “dar uma canja” na festa de confraternização. Eu topei, mas condicionei, de certa forma, que eu elegeria o repertório. Assim, escolho um entre dois embaraços – ou não saber tocar o que me pedem, ou não agradar com o meu repertório. Fico com esta última alternativa porque ela é um investimento de longo prazo. Se meu repertório não agradar, provavelmente não me convidarão no próximo ano. Se agradar, me transformo no seresteiro oficial da turma.

Até a próxima (se eu sobreviver aos tomates...)

Luis Felipe


P.S. Link para a origem da caricatura, o blog do caricaturista: http://alvarocabral.blogspot.com/2010/08/wando-caricatura.html

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Inocentes demais




Agora, fazendo oposição a uma postagem intitulada de Indecentes, cuja primeira linha sugeria para retirar as crianças da sala, nada mais justo do que fazer uma postagem para incluir os inocentes. E não, não falaremos da Turma do Balão Mágico, nem nada assim. Mas acho que de qualquer forma é possível chamar as crianças (ou não!) para o papo. Enfim, o assunto ainda é o mesmo – namorico - mas desta vez tratado de uma forma bastante infantil até. Tanto e tão inocente que gera um efeito de ironia.
Trata-se de Vo(C) da extinta banda porto-alegrense Vídeo Hits, que era encabeçada pelo multimídia e pluritalentoso Diego Medina. Ironia pura. Não que uma letra de canção não possa ter sua ingenuidade genuinamente. Mas eu não consigo ver dessa forma. A maldade está na cabeça de quem quer ver. E não quero dizer com isso que seja ironia no sentido de que se está dizendo umas palavras doces, inocentes até, para dizer obscenidades, no fundo. Nada disso.
A questão para a qual quero chamar atenção é justamente do exagero dessa ingenuidade, que produz sentidos e dialoga com um conjunto de letras românticas e melosas – Vo(C) é uma baita de uma sátira ao exagero pop. É uma sátira, inclusive, de coisas que nem tinham surgido ainda quando a música foi feita. Pode uma sátira antecipar o objeto satirizado? Se já dissemos todos os outros absurdos, como por exemplo, que a resposta vem antes da pergunta, então me auto autorizo a dizer que a sátira pode antecipar o objeto da sátira. E o excesso das bandas pop está afunilando para coisas que não são nada novas: musiquinhas alegres e visual colorido me faz lembrar do Balão Mágico e do Trem da Alegria. Ah, mas essas manifestações musicais do pop (emo, coloridos, happycore, etc) têm o peso das guitarras que esses conjuntos musicais infantis não tinham... Quem disse? Vocês não sabem se na minha infância eu não ouvia Balão Mágico plugado no cubo com o overdrive (efeito de distorção) lá em cima. Juro. Jairzinho e Simoni para mim eram como Andreas Kisser e James Hetfield. Tá, é brincadeira. Eu nem mesmo conheço uma parte daquilo que estou falando (qual?), nem faço questão de conhecer. Minha FM, e muito menos minha vitrola, não toca qualquer coisa. E viva a música boa em geral, que dispensa rótulos, na verdade.
Mas agora falando sério, mais ou menos, é disso do que estou tratando. A ironia da canção da Vídeo Hits é uma grande tirada de sarro com um excesso pop de vertente romântica. Tanto que, enquanto as bandas pop (e incluam as boas bandas aí) já estavam se repetindo nos clichês de “quero você”, e aí por diante, houve algumas manifestações partindo de criativos artistas que conseguiram olhar para uma tradição já cansada de se repetir, e fazer outra coisa, mesmo aparentemente fazendo o mesmo. Nesse sentido, pelo menos eu acho, Por Você, do Barão Vermelho, não é uma repetição (já é uma outra coisa, é uma enumeração de exageros - "por você, desejaria todo dia a mesma mulher"); enquanto Como Eu Quero, do Kid Abelha, mesmo sendo uma belíssima canção, não está questionando a regra, mas aplicando-a. E é justamente isso que se faz em Vo(C), da Vídeo Hits: fazer outra coisa que não seja necessariamente "aplicar a regra". Na canção, marca-se exageradamente uma inocência produzindo-se um sentido. Isto é, não é uma canção que quer exatamente ser levada a sério como letra de música romântica pop. Mas satirizar, assim, as outras.
Vo(C)
Deixa eu mostrar aquela nuvem lá no céu
Um pedacinho de hortelã
Vai refrescar todas as horas da manhã
E quando eu sentir sua boca a me beijar
Seu beijo vai me acalentar
Vou suplicar pra que me beije de mansinho
Com o rosto coladinho
Respirando baixinho
Será que é pedir demais pra mim
Uma garota assim?
Vou lhe esperar comportadinho no quintal
Roendo as unhas devagar, agoniado
Atrás das roupas no varal
Você então com os olhos a me procurar
Deixe esse céu azul queimar
Qualquer restinho de espera e solidão
Segure minha mão
É assim que vai ser
Sempre estar com você
Foi feitinha pra mim
Uma garota assim

Até a próxima!

Luis Felipe

sábado, 4 de dezembro de 2010

Para o poeta do infinito


Um amigo tem me sugerido que eu escreva alguma coisa sobre o Paulinho da Viola. Sobre esses caras, essezinhos... Paulinho da Viola, Chico Buarque, outros poucos, eu me recuso a falar. Não que não mereçam um comentário de verbo frouxo e descompromissado do blog de boteco. Vejo o blog como uma conversa de boteco. Os textos são mesmo às vezes inspirados em argumentos de boteco. O que eu poderia dizer sobre o consagrado Chico? Chico é tudo. É Chico na música e Machado de Assis na literatura, não pelas suas incomparáveis qualidades e temáticas; pois são ótimas as qualidades de ambos, cada um à sua medida artística; mas são qualidades diferentes, de dizeres e significados comparavelmente contundentes na cultura brasileira e no que se diz sobre essa cultura. Se comparo Chico Buarque a Machado de Assis é pensando na recepção de sua obra e na produção que se faz sobre eles. Não falo em relação à obra. Refiro-me ao fato que todo mundo já disse tudo. Então estou isento de falar de Chico. Mas falar sobre Paulinho é mais difícil que tudo.

Paulinho é pouco falado, talvez, apesar de muito reverenciado, salvo exagero, pelos maiores e melhores. Excetua-se o exagero. Porque nada em Paulinho é exagerado. Artista meticuloso, quase minimalista, quer passar a sua música e não causar uma impressão pela imagem. Quem lembra de Paulinho da Viola se apresentando nas últimas duas ou três décadas senão trajando um sóbrio conjunto de terno e camisa? Há quem diga que ele se apresenta burocraticamente. Há quem diga que artista tem que ter um moicano ou uma argola gigante no nariz. Não se engane: aqueles que souberam e sabem fazer A ARTE não necessariamente sentem a necessidade de fazer do seu corpo e do seu guarda-roupa um ateliér de bizarrices ultramodernistas. Paulinho é conciso e preciso. Até no guarda-roupa.

E nas letras... é aí que coisa encrespa. Se do Chico já se disse tudo, do Paulinho da Viola, não necessariamente. Porque Chico, como bom malandro, faz seus adoradores se sentirem inteligentes. Todo mundo tem uma citação de Chico na manga para ocasiões oportunas. Mostrar para a garota (ou para o garoto) que conhece, e o quanto conhece de Chico, é mostrar que tem conteúdo, e ganhar pontos na tabela geral do flerte. Eu acho que sei tudo de Chico, vida e obra completa de trás pra frente, mas não falo nem o nome dele inteiro porque me recuso. Mas falar de Paulinho é diferente; é na verdade quase uma impossibilidade. Paulinho da Viola é o poeta do silêncio: “o poeta declina daquilo que ele não sente / e o silêncio é o peso que ele conduz / mas se o tempo se acha no céu do poente / e do céu se retira um pedaço do azul / o poeta ressurge e lança no ar a semente / e reparte feliz a sua luz”. Quer dizer, essa canção, Quando O Samba Chama, quase uma brincadeirinha em forma de samba, em meia dúzia de versos, diz muito sobre o fazer poético.

Algumas letras de Paulinho da Viola nos provocam reflexões profundas. Nenhuma conclusão verbalizável talvez. Estou falando, mais ou menos, no todo da obra, e do todo de cada letra. Paulinho não pode ser considerado senão no conjunto da obra. Vide, por exemplo, suas recorrentes metáforas de marinheiro. Não se pode falar de Timoneiro (“não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”), sem referir a Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida (“foi um rio que passou em minha vida / e meu coração se deixou levar”), ou Mar Grande (“se navegar no vazio / é mesmo o destino do meu coração / parto pra ser esquecido / navio perdido na imensidão”) ou às canções em que a metáfora está mais escondida, não presente no título, como Argumento (“sem preconceito ou mania de passado / quem não quer ficar do lado / de quem não quer navegar / faça como um velho marinheiro / que durante o nevoeiro / leva o barco devagar”) ou Novos Rumos (“vou imprimir novos rumos / ao barco agitado que foi minha vida / fiz minhas velas ao mar / disse adeus sem chorar / e estou de partida”).

O que é essa metáfora recorrente? Por que isso? Se ele é o poeta do silêncio que está sempre metaforicamente navegando, do que ele fala exatamente? Esse meu amigo que ouve Paulinho da Viola disse, sem exatamente dizê-lo assim, que ele é o poeta do tempo metafísico. Quando se diz, em Para Ver As Meninas, “silêncio por favor (...) hoje eu quero apenas uma pausa de mil compassos (...) quem sabe de tudo não fale / quem não sabe nada se cale”, e logo após se anuncia o objetivo pouco modesto (ele pode) “porque hoje eu vou fazer /ao meu jeito eu vou fazer / um samba sobre o infinito”, no próprio samba que já está feito, cria-se um efeito de algo sutilmente eterno, se se pode dizer assim. Porque ao dizer “vou fazer um samba sobre o infinito”, e o samba que se escuta é o próprio samba a ser feito, fundem-se presente e futuro, e também passado, que é quando, na realidade, houve o trabalho da criação poética. Mas é um argumento difícil, senão de aceitar, pelo menos de formular. Talvez ele retome, não sei, de Pessoa, que “navegar é preciso / viver não é preciso”, porque de navegar que é feito o viver (com sentido diferente ao dado pelo poeta), então navegar é viver, e isso implica a passagem do tempo. E como esse tempo é sempre inapreensível, tal qual a água do rio que sempre e eternamente passa, só cabe numa metáfora de marinheiro. Num conjunto de metáforas. No conjunto da obra de Paulinho da Viola. É o viver que melhor se explica nas metáforas de navegar, porque o tempo, de qualquer forma que se olhe, é abstrato, invisível e apenas experienciado no presente e fugazmente. Não se pode “ver” o passado. Não se pode prever o futuro. No presente só se pode estar, e estar no tempo presente e senti-lo ao mesmo tempo é quase conversa de louco ou papo de livro de auto-ajuda. Mas as metáforas de marinheiro criam um efeito quase que visual para o que é esta passagem do tempo, para o que é o transcorrer da vida. Acho que estou passando da conta. Garçon, a saideira!

Eu não imagino muita gente discutindo as letras de Paulinho da Viola. Exceto talvez, aquelas menos elaboradas, que também existem. Mas as letras mais sofisticadas não são para qualquer um. Talvez na mesa ao lado, nesse mesmo boteco, se encontrássemos o Ferreira Gullar, o Chico Buarque, o Aldir Blanc e o Leminski, este se ainda fosse vivo, esses poderiam estar falando com propriedade das letras mais poéticas de Paulinho. Outros meros mortais estariam sendo atrevidos se falassem. Eu quase me atrevi. Mas não. Foi tudo conversa de boteco, desconsiderem. Só disse que Paulinho da Viola é o poeta do silêncio, e cumprindo seu desejo para que seja feito o samba sobre o infinto, aqui me calo.



Até a próxima!

Luis Felipe

Para um amor no Recife

(Paulinho da Viola)

G#7/13-

C#m7 F#m F#7
A razão porque mando um sorriso
Bm7
E não corro
Bm/A
É que andei levando a vida
C#m7
Quase morto
C#7 F#m
Quero fechar a ferida
B7 C#m7
Quero estancar o sangue
F#m B7
E sepultar bem longe
B7/13 B7 C#m7
O que restou da camisa
G#7/13- C#m7 A7 G#7
Colorida que cobria... minha dor
F#m B7
Meu amor eu não me esqueço
C#m7
Não se esqueça por favor
C#7 F#m
Que voltarei depressa
B7 C#m7
Tão logo a noite acabe
F#m B7
Tão logo este tempo passe
B7/13 G#7/13- C#m7
Para beijar... você



A cifra foi tirada a partir da gravação original (álbum de 1971)

Até a próxima!

Luis Felipe

sábado, 27 de novembro de 2010

A lenda do eterno retorno revisitada



Lulu Santos acerta 98% das vezes. E os 2% restantes a gente simplesmente ignora, ou não conhece mesmo, o que é quase a mesma coisa. Ou não, nem muito antes pelo contrário. Mas sem tergiversar muito, vamos ao assunto.

Vale de Lágrimas é uma canção muito esperta, e que pode pegar o seu ouvinte despreparado. Despreparado para as sacanagens que Lulu Santos faz com essa canção. Em Vale de Lágrimas nota-se que há uma discussão em cima de grandes clichês da música em geral. Para começar, a lenda do eterno retorno, ou melhor dizendo, exatamente o verso “volta para mim”, que ele mesmo sempre volta. Há muitas canções com esse verso. Há canções com esse verso servindo como título. Há canções dos mais diversos estilos musicais que em algum ponto vão dizer “volta para mim”.

Como então um compositor faz uma canção em que quer dizer “volta para mim” sem que isso seja simplesmente um clichê, como se ele não tivesse pelo menos uma vontadezinha de inovar? Eu sugeriria, como uma potencial resposta, que o poeta tem que, primeiramente, saber que está no terreno da coisa repetida exaustivamente. Claro que o clichê, por si só, pode funcionar. Tanto que vira clichê. Mas é mais legal, isso ninguém discute, quando existe a consciência disso, faz-se alguma referência ao fato de se estar lançando mão de um clichezão, e assim, sair da mesmice antipoética.

A perspicácia de Lulu sobre esse clichê, em Vale de Lágrimas, é de uma sutileza só. Diz a letra “faça-me um favor / volta para mim / é o que sei dizer / nada mais / se não me repetir”. Ora, preciso ser mais explícito? “Repetir-se”, ali, além do que significa dentro da própria lógica da letra, também significa repetir a tradição poética das canções que dizem “volta para mim”, que é o próprio efeito clichê. Além desse refrão que é excepcionalmente bom, a letra toda se constrói em cima de uma metáfora, em que o ser romântico apaixonado e abandonado só se vê diante de duas alternativas: ou jogar-se no mar para se afogar ou atravessar um deserto. É bem legal quando ocorrem as aliterações na sequência dos adjetivos “molambo”, “sonâmbulo”, “insone” e “insano”. E para falar da música propriamente dita, mais uma sacanagem, no bom sentido. É uma música alegre, construída em tom maior, e não uma música melancólica, triste, etc, como seria normal para uma música em que se diz “volta para mim”. Quer dizer, são diversos níveis em que o compositor pode retomar os clichês para sair deles.

Mas para sair do meu próprio clichê que é sempre repetido e insistentemente falado no blog (as letras), vou falar de outra coisa. Vou falar um pouco do clipe. Genial! Fica de parabéns o cérebro que bolou esse clipe, que eu não sei quem é. O clipe conta uma história, cuja sinopse é bem simples: o músico para no canteiro no meio de um viaduto, guitarra na mão e amplificador do lado, no meio da noite, em frente ao prédio daquela que se “desapegou” dele. E começa a tocar. O visual do clipe é meio que a fotografia que usaram no Sin City, o filme; preto e branco e tal, até o próprio Fuca da polícia evoca algo do filme Sin City, inspirado e baseado no quadrinho homônimo do Frank Miller. Sei lá, posso estar falando besteira. Mas vai ser só mais uma no meio de tantas. Posso re-narrar a história que conta o clipe, chamando atenção para uns detalhes que acho fundamentais.

Voltando à história, antes mesmo do cantor começar a cantar, uma moça com uma bolsa grande sai do prédio. Aos poucos, os vizinhos do apartamento começam a acordar. A homenageada pela serenata é uma das últimas a acordar. Um tiozinho mal humorado (no lugar dele, também estaríamos) acorda e chama a polícia. Um dos moradores acorda, sente o espaço restante da cama vazio e vai olhar o guarda-roupa, que também está vazio.

E daí? O que tem a ver o cara do guarda-roupa com a história? O seguinte: a história na verdade são esses dois micro-romances paralelos, do serenatista lá em baixo e da desapegada lá em cima, e o do cara do guarda-roupa. Mas o que diz o guarda-roupa vazio, para ser importante para a história contada pelo clipe? Diz justamente que nem sempre foi vazio, diz que ali a sua companheira guardava suas roupas. E que ele está, sim, sozinho. Porque o guarda-roupa está vazio.

Voltando à serenata, tem um efeito engraçado a moça jogando no cantor uns LPs. Seriam os discos dele? Dele que comprou os discos na loja ou dele que fez as músicas dos discos? Depois ela começa a jogar as cartas de amor e as fotografias. Ele não vai embora. Mas algo está para mudar na atitude dela. Ela pega uma carta ou fotografia que a faz parar os lançamentos da sacada. Alguma coisa toca ela, senão só no objeto que tem na mão, talvez na situação toda. Ela toda revoltada na sacada e ele pagando um micão lá em baixo, só por causa dela. Ela finalmente é tomada por compaixão e vai pelo menos ouvi-lo. Quer dizer, ela já estava ouvindo, todos no prédio estavam. Ela vai ouvi-lo no outro sentido.

Ela desce do jeito que está vestida para dormir, de calcinha e blusa (e nem precisava mais!!!), além de um casaquinho comprido para se proteger do frio da madrugada. Mas o vizinho que é o tiozinho já chamou a polícia, e a polícia está vindo. A polícia recolhe o homem que está perturbando a ordem e o horário de silêncio. A bela assiste, do meio da rua, seu pretendente ser levado na viatura do Sin City. E no apartamento do cara que foi ver o guarda-roupa, alguém retornou. Era a moça que tinha saído bem no começo do clipe, a companheira do cara do guarda-roupa (com as roupas na bolsa grande). Ela não chegou na esquina e se sensibilizou com a serenata que era para outra. É a metáfora da construção poética, inclusive em letras de música, que não necessariamente “funciona”, num certo sentido, para quem a faz nem para a “musa”, mas mais para quem as escuta.


Vale de Lágrimas

Deixa eu lhe dizer
O que eu passei
Desde que você
Se desapegou de mim

Eu zanzei pelas ruas,
Um molambo
Sonâmbulo,
insone e insano
Queria me atirar no mar

Só para me afogar
Que ainda é melhor
Que ser um devedor
Nas contas do amor

Preferia um deserto atravessar
Sob o sol e as noites sem luar
Do que dar meu braço a torcer

Que você não está
Que você não vem
Faça-me um favor
Volta para mim

É o que sei dizer
Nada mais
Se não me repetir

Que zanzei pelas ruas
Um molambo, sonâmbulo
Insone e insano
Queria me atirar no mar

Só pra me afogar
Que ainda é melhor
Que ser um desertor
Dos campos do amor

Preferia um deserto atravessar
Sob o sol e as noites sem luar
Do que dar meu braço a torcer

Até a próxima!

Luis Felipe

sábado, 20 de novembro de 2010

O que é o samba?

Em Samba A Dois (Marcelo Camello, Los Hermanos), canção da qual já falei aqui brevemente, propõe-se a pergunta “quem se atreve a me dizer do que é feito samba?” A pergunta é pertinente, sim, mas curiosamente a ordem pergunta-resposta nesse grande diálogo que é a tradição do samba não é necessariamente linear nem cronológica. O tempo não existe só cronologicamente e os sentidos estão aí no mundo, tanto que pode existir uma resposta na realidade para uma pergunta que ainda não foi feita. Responder a uma pergunta de tal natureza é apenas tornar evidente uma resposta que talvez já “existisse” antes mesmo de ser verbalizada. E quem responde à questão de Samba A Dois é, na verdade, uma tradição longa de sambistas, a maioria antes da própria pergunta ter sido feita.

Claro, há de se fazer referência ao fato de que a banda Los Hermanos não é um conjunto de samba, mas uma banda de rock, digamos assim, e que reuniu diferentes influências e estilos compondo, bem dizendo, canções híbridas. Nesse sentido, a pergunta “quem se atreve a me me dizer do que é feito o samba?” pode ser entendida como um desafio, tipo “estarei ousando dentro do samba, que não é nem o meu estilo, então quero ver quem é capaz de me dizer que não é samba”. Mas o que estou propondo é deixar essa interpretação de lado, pelo menos por enquanto, e inscrever a pergunta feita em Samba A Dois na tradição que define o samba, justamente porque ela dialoga com as respostas que existem em letras de sambas tradicionais. Tanto a ideia da pergunta como desafio quando a ideia da pergunta dialogando com a tradição coexistem, mas nos ocuparemos primeiro com a primeira possibilidade interpretativa.

Posso dizer, com pouca chance de estar errando muito, que há uma tradição dentro de letras de samba cujo motivo é, justamente, definir o próprio samba. Nisso o samba pode se configurar até como uma prática discursiva, aproximando-se portanto das ciências humanas que precisam definir-se pois não têm um objeto “concreto”, “real” e “material” observável fora do discurso. Já se diz em Nó Na Madeira, de João Nogueira (que é uma canção autorretrato altamente metafórica, interessantíssima de se analisar), que “o samba é ciência”. Claro, isto evoca uma discussão eterna entre as “obviamente” diferentes em tudo arte e ciência, e ninguém parece reivindicar muito seriamente que “samba é ciência”, talvez, a não ser metaforicamente. Mas se tomarmos o conjunto de letras de samba, enquanto prática discursiva que, inclusive, cria ela própria e uma cultura do samba, isto é, cujos sentidos não são somente metáforas, mas também sentidos do real produzidos, então como é possível se estabelecer um limite, senão relativo, entre ciência e arte?

Mas vamos deixar de lado a minha pergunta, menos interessante, e voltar à pergunta em Samba A Dois. Existe essa tradição de se definir o samba na letra de samba. Meus conhecimentos limitados não me permitem reconhecer todas as letras existentes desde os primórdios do nada e do nunca, mas posso apontar algumas canções que conheço. Em Feitio De Oração, por exemplo, de Noel Rosa e Vadico, instaura-se o sentido de o samba ser o que se exprime da dor sentimental, da dor de amor, como arte poética ainda herdeira do Romantismo:

“batuque é um privilégio / ninguém aprende samba no colégio / sambar é chorar de alegria / é sorrir de nostalgia / dentro da melodia (...) O samba na realidade / não vem lá do morro / nem vem da cidade / quem suportar uma paixão / verá que o samba então / nasce do coração”.

Ainda nessa mesma canção, cujo título - Feitio De Oração - diz que o poeta canta o samba como se dissesse uma prece, tal sentido é de certa forma retomado em Samba Da Benção, de Vinícius de Moraes e Baden Powell: “é preciso um bocado de tristeza / se não não se faz um samba não” (...) fazer samba não é contar piada / quem faz samba assim não é de nada / o bom samba é uma forma de oração”

E a “forma de oração" do Samba Da Benção faz referência quase direta à ideia de prece proposta em Feitio de Oração, acima citada, mas mais diretamente ao trecho “... cantar com satisfação e harmonia / esta triste melodia / que é meu samba / em feitio de oração”. Essa ideia de ligação com o transcendente também percorre um bom punhado de sambas, como por exemplo “samba é tudo o que Deus abençoou” (Samba É Tudo, Celso Fonseca e Ronaldo Bastos); “o samba (...) é o grande poder transformador” (Desde Que O Samba É Samba, Caetano e Gil). E mais ou menos dentro dessa ideia de ligação com o transcendente, com o divino até, a composição Poder Da Criação, de João Nogueira, “teoriza” sobre a inspiração, sendo esta advinda de uma “força maior”:

“não, ninguém faz samba só porque prefere (...) não precisa se estar feliz nem aflito / nem se refugiar em lugar mais bonito / em busca da inspiração” (...) faz pensar... que existe uma força maior que nos guia (...) e o poeta se deixa levar por essa magia / e o verso vem vindo e vem vindo uma melodia / e o povo começa a cantar”.

Existem sambas que vão se autodefinir pela questão da conduta do sambista frente à "sociedade do espetáculo", como em Samba É Tudo, acima citada, mas mais especificamente no trecho “ser sambista é muito mais / do que ser notícia nos jornais (...) o bom samba é o que traz / na cadência a doce pulsação da vida / pra fazer um samba a mais / é preciso mais que pretensão”. Ou seja, se me é dado o direito de explicar, o bom sambista não vai buscar pela fama, mas pela essência, pela poesia intrínseca a tal “doce pulsação da vida”. Interessante que pulsação tem, pelo menos aqui, dois sentidos, o de pulso ao qual o ritmo segue, e a pulsação dos batimentos cardíacos, que é para algumas espécies animais sinônimo de vida (se tem pulsação é porque está vivo).

A forma como se toca o samba, ou melhor dizendo, os instrumentos escolhidos para se tocar um samba, também pode ser uma forma de definição. Nesse sentido é estericamente hilariante o diálogo que se estabelece entre Samba A Dois, lá do início do texto, e Argumento, de Paulinho da Viola. Samba A Dois é praticamente um samba tradicional, musicalmente falando. Mas a banda que a compôs toca a canção com guitarra distorcida, baixo e bateria, entre outros. Em Argumento o sambista diz “tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim (...) olha que a rapaziada está sentindo falta / de um cavaco, de um pandeiro e de um tamborim”. A ideia de "desafio" sugerida no segundo parágrafo e retomada somente agora, nesse diálogo entre as músicas que eu estou propondo, diz respeito mais a “quem se atreve a me dizer” como argumento, pois ao mesmo tempo que a pergunta questiona, também sugere que o desafiado, na verdade, não se atreve a dizer do que é feito o samba, porque autoridade não é. Mas cuidado: nada disso do que estou dizendo existe fora desse texto, porque a canção de Paulinho da Viola é bem anterior a do Los Hermanos, e uma não se refere a outra, pelo menos não intencionalmente, supomos. E Paulinho da Viola seguramente é autoridade no samba. Contudo, relacioná-las pela diálogo estabelecido na tradição produz tranquilamente este efeito de pergunta e resposta que se complementam.

Existe também a ideia de que o samba é uma missão a ser continuada como em Não Deixe O Samba Morrer (Edson Conceição e Aloísio da Costa), em que se diz - “antes de me despedir / deixo ao sambista mais novo / o meu pedido final / não deixe o samba morrer / não deixe o samba acabar / o morro foi feito de samba / de samba pra gente sambar (...) o meu anel de bamba / entrego a quem mereça usar”. E este verso “o morro foi feito de samba”, que coloca o que seria um adjunto adverbial de lugar (o samba foi feito no morro) no lugar de sujeito da passiva, ao propor essa inversão, está naturalmente dizendo alguma coisa. E dizer que o morro foi feito de samba significa dizer que a cultura do morro se construiu pelo samba, pelos discursos que o samba veicula sobretudo nas letras. Ou seja, é uma noção de cultura já bem avançada, diferente daquela em que o lugar é determinante da cultura e seus efeitos, mas pelo contrário, a cultura do morro são os próprios discursos do e sobre o morro, e o samba é o registro discursivo, desde que musical, da cultura do samba de morro.

Se quisermos retomar a pergunta inicial para, talvez, propor uma resposta, eu diria que uma parte das letras de samba é feita, justamente, desse diálogo com a tradição: o samba que se define a si mesmo, assim como o samba que se pergunta quem é - e se autoafirma. Também disto é feito o samba. E tenho dito!

Para brindar este texto deixo o link de vídeo do Youtube com uma gravação histórica dos Novos Baianos, cantando o samba-exaltação Brasil Pandeiro, de Assis Valente. Deixo também uma confissão – eu me entusiasmei escrevendo esse texto e depois me emocionei ouvindo esta música.


http://www.youtube.com/watch?v=ojeJ-DCMtls


Até a próxima!

Luis Felipe


Crédito da imagem: caricatura de Noel Rosa por Cristiano Teles: http://searrependimentomatasse.blogspot.com/search/label/caricas

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Problema de Gênero II

(Da série Problema de Gênero)

Dente De Ouro é uma ladainha de capoeira, e tem várias versões que são atribuídas a diferentes “autores”, que na verdade são cantadores e continuadores de uma tradição oral que preserva a memória de ladainhas vinda desde os escravos. Isto é, a história das ladainhas se confunde com a história da capoeira, e tudo isso teve origem na escravidão. O site www.capoeira-infos.org atribui a autoria a diferentes “autores” ou cantadores como Mestre Pastinha numa das Fontes, e a Mestre Canjiquinha e Mestre Valdemar em outra. Curiosamente, numa das fontes, diz-se que a ladainha pode ter sido inspirada na canção de João de Oliveira, cantada por Francisco Alves, de 1929, chamada de Quem Eu Deixar Não Quero Mais, que tem uma estrofe que é bem assim: "tens um dente de ouro / fui eu que mandei botar / vou te rogar uma praga / para esse dente quebrar".

A versão que parece ser a mais seguida pelas rodas de capoeira, e que por isso se torna a mais “autêntica”, é aquela atribuída a Mestre João Pequeno de Pastinha:

Dente De Ouro

Ela tem dente de ouro
Ela tem dente de ouro
Ela tem dente de ouro

Ora meu Deus
Fui eu que mandei botar

Vou rogar nela uma praga
Para esse dente se quebrar
Ela de mim não se lembra

Ora meu Deus
Nem dela vou me lembrar

Menina, diga seu nome
Que eu também já digo o seu
Eu me chamo Chita Fina
daquele vestido seu

Casa de palha e palhoça
Se eu fosse o fogo eu queimava
Toda mulher ciumenta
Se eu fosse a morte eu matava


Camaradinha, viva meu Deus....


Esta versão varia pouco da versão atribuída a Mestre Canjiquinha e Mestre Waldemar:


Ela tem dente de ouro
Ela tem dente de ouro
Foi eu quem mandei botar
Eu vou rogar uma praga
Pro dente se quebrá

Dela eu não me lembro
Ó meu Deus
E não quero me lembrar
Das horas amargurada, oi iá iá
Com ela eu conversava

Na beira de uma praia
Em um bonito luar
Ela sempre me jurando
Ó meu Deus
Que a outro não amava

Vim da Ilha de Maré
Jogar em Santa Rita
Duas coisas neste mundo
Que meu coração palpita
É um berimbau roseiro
E uma moça bonita

Camará


A banda brasileira de blues Blues Etílicos gravou a ladainha, lá pelos idos da década de 1990, realizando um feito realmente impressionante: mesmo sendo um banda de blues no sentido tradicional, mas que experimentava com as cores da brasilidade (com várias músicas cantadas em português, o que poucos já fizeram, como Celso Blues Boy e André Christovam) eles radicalizaram na mistura de gêneros. E gravaram uma ladainha de capoeira na tentativa de fazer um blues brasileiro mesmo, isto é, um tema brasileiro em sentido amplo, a estrutura “melódica” da ladainha, com não muito mais que as notas na distância de um tom entre uma linha “melódica”, desde que monotônica, e outra.

A idéia da Dente De Ouro foi, sem querer poupar elogios aos meninos do Blues Etílicos, genial por diversos motivos. Se pensarmos, por exemplo, que o blues dos estados sulistas americanos, na sua simplicidade pentatônica, derivava dos chants dos escravos das plantações de algodão do período colonial escravagista, e que as ladainhas da capoeira seriam, mais ou menos, o mesmo tipo de manifestação dos escravos daqui, então juntar a ladainha com o blues não era simplesmente fazer mistura de gêneros, mas reunir irmãos separados há cerca de 500 anos em diferentes navios que traficavam pessoas da África para servir como escravos nas Américas. O que eles juntaram e que foi separado no decorrer desse meio milênio, como ocorre com as manifestações artísticas, foi se modificando com o tempo.

O blues se sofisticou e se aprimorou, dos chants nasceram os negro spirituals, o jazz, o próprio blues, e uma penca de ramificações de tudo isso. Dos ritmos africanos, no que estes se misturaram com os ritmos portugueses, entre outros, foram nascendo o maxixe, do qual vieram o samba e o choro. Mas as ladainhas propriamente ditas mantiveram-se como um registro oral na memória da cultura (no sentido de coisa transmitida por tradição oral) das ladainhas originais, talvez. Essa memória popular é algo impressionante. Não se imagina que um texto oral seja mantido rigorosamente idêntico e imutável através dos séculos. Pelo contrário, a tradição oral reconhece a nova situação em que se reconta uma história acrescentando-lhe coisas ou as abreviando.

Mas vindo adiante, fazer de uma ladainha um blues é também algo impressionante. A Dente De Ouro da Blues Etílicos, por ter juntado ladainha e blues, é uma espécie de justiça histórica, uma mera recriação cujas referências são extremamente óbvias, ao mesmo tempo que no resultado da soma é uma criação genial. Tanto que não se pode pensar em fazer isso de novo sem que seja, agora sim, um plágio. Dente De Ouro foi uma sacada muito autêntica justamente pelas coisas já existentes que foram juntadas. A letra cantada pelo Blues Etílicos é uma forma simplificada da ladainha apresentada por Mestre Pastinha:


Ela tem dente de ouro
Ela tem dente de ouro
Ai meu Deus foi eu quem mandei botar
Vou rogar nela uma praga
Pra esse dente se quebrar

Ela de mim não se lembra
Ai meu Deus nem dela vou me lembrar
Ela de mim não se lembra
Ai meu deus nem dela vou me lembrar

Casa de palha é palhoça
Se eu fosse fogo queimava
Toda mulher ciumenta
Se eu fosse a morte eu matava

O próprio grande Vinícius de Moraes, após uma longa jornada de trabalhos diplomáticos em que conheceu o mundo, vinhos e queijos, afrouxou a gravata, quer dizer, queimou a gravata e abriu a camisa até quase o umbigo, mandou descer uma cerveja e uma porção de bolinho de aipim, e resolveu curtir a cultura brasileira mais de perto. Na verdade Vinícius não podia com cerveja porque sofria do mal de diabetes, então o que ele bebia era seu famoso “cachorro engarrafado”, o melhor amigo do homem, o uísque. Nesse período Vinícius compôs com seu parceiro Baden Powell, depois que este mostrou-lhe uma imitação de berimbau com o violão e uma melodia, uma canção em homenagem à capoeira. Berimbau tem um solo de violão que procura imitar o som do berimbau, assim como Dente De Ouro, do Blues Etílicos, tem um solo de guitarra na introdução cuja intenção é a mesma.

Os temas de Berimbau de Vinícius e Baden Powell são praticamente os mesmos que percorrem as ladainhas tradicionais, inclusive a Dente De Ouro: a moral, a traição, a luta, a tristeza entre outras coisas. Nesse sentido, pode-se supor que Vinícius não só conhecia o mundo, vinhos e queijos, como realmente se aprofundou em diferentes manifestações da cultura brasileira, como a capoeira e as ladainhas. Nessa canção, as frases melódicas são também inspiradas nas ladainhas, mas com uma pitada “bossa nova”: as frases monotônicas cantadas na distância de um semitom, causando aos ouvidos maior tensão. A parte mais melódica, que começa com “capoeira me mandou...”, por outro lado, já cumpria os preceitos da canção, embelezando o conjunto da música.


Berimbau

Quem é homem de bem não trai
O amor que lhe quer seu bem
Quem diz muito que vai não vai
Assim como não vai não vem

Quem de dentro de si não sai
Vai morrer sem amar ninguém
O dinheiro de quem não dá
É o trabalho de quem mão tem
Capoeira que é bom não cai
E se um dia ele cai cai bem

Capoeira me mandou
Dizer que já chegou
Chegou para lutar
Berimbau me confirmou
Vai ter briga de amor
Tristeza camará...


Links:


Baden Powell falando sobra a composição de Berimbau (e tocando) no programa Ensaio:

http://www.youtube.com/watch?v=j1sok3vvsBE&feature=related


Clipe de Dente De Ouro com Flávio Guimarães (harmônica) e Blues Etílicos:

http://www.youtube.com/watch?v=BqK7tj7KdDQ


Berimbau na voz do poeta, “Mestre Vina”:

http://www.youtube.com/watch?v=dwuGotQ2UI0&feature=related



Até a próxima!


Luis Felipe


P. S. A imagem é um selo brasileiro, mas para ser justo, copiei-o do site selos e filatelia: http://www.selosefilatelia.com/PastaLancamentos09/011.html

sábado, 13 de novembro de 2010

Indecentes



Tirem as crianças da sala. Falaremos de sexo!

Mas não sexo sexo. Sexo na letra de música, algo sugestivo, indireto. Indecente, desde que poético. Nada preciso ser dito (tão) diretamente. Ninguém foi mais indecente, talvez, que Serge Gainsbourg, o compositor francês narigudo e orelhudo, mas “pegador”. Pegou Brigitte Bardot, inclusive. E além desse item no currículo que, por si só, já é impressionante, também influenciou um pá de manos da pá virada, justamente por falar de intimidades. Se pudéssemos, aqui, estabelecer na “língua oficial” o adjetivo gainsbourguiano (no filme Gainsbourg, Vie Héroïque, lançado este ano, usa-se o adjetivo), eu diria que algumas canções são gainsbourguianas. Entre elas, e talvez principalmente, a Cama e Mesa, de Roberto Carlos: “quero ser (...) o sabonete que te alisa embaixo do chuveiro, a tolha que desliza pelo corpo inteiro”. E enquanto Serge Gainsbourg fazia músicas polêmicas e sensuais na França, entre os 1970 e 1980, Barry White fazia algo similar nos EUA. Barry White, nesse sentido, também era gainsbourguiano: “tonight when we make love / I'm gonna work your body with my tongue” (algo como “hoje a noite, quando fizermos amor, eu vou lamber você todinha”!!! mas dito não tão diretamente, admito, o tradutor é que foi meio mal intencionado), são versos de Staying Power.

O maior sucesso da carreira de Serge Gainsbourg foi Je T'Aime Moi Non Plus, que é uma gemeção só. Parece que ele teria feito a canção ainda quando se encontrava com a loirinha sexy-babarella Brigitte Bardot, um dueto, mas que ela não teria podido gravar por motivos pessoais. A canção ficou engavetada um tempo e a inglesinha Jane Birkin encarou a bronca, em todos os sentidos: viveu um romance público, ao mesmo tempo que semi-nua, com o compositor e cineasta Gainsbourg. Ah, sim, e gravou com ele a música que foi um escândalo, mesmo no país que lançara juntamente com a Itália, uns anos antes da música, um filme, também escandaloso, O Último Tango Em Paris, em que estrelou Marlon Brando no papel de canibal. Bem ou mal dizendo, era a França botando as manguinhas (e outras coisas) de fora.

Mas uma coisa interessante, para poder falar de referência, é que um verso de Je T'Aime Moi Non Plus pode ter inspirado a composição Entre Seus Rins, da banda paulistana IRA. Além de todos os “je t'aime” da canção francesa, que obviamente viram os “te amo” ou mesmo “gosto de você” em português, a canção francesa tem um verso ali que é essa metáfora biológica, ou algo assim: “entre tes reins”. Essa expressão não precisa necessariamente ser traduzida como “entre teus rins”. Importa é que se entenda de que região do corpo se está falando: região interna na área dos quadris. Como se acessa a região interna é bem simples, e eu não preciso explicar porque o leitor e a leitora sabem. Aliás, na canção francesa, também diz a mulher, alternando com o homem do dueto: “tu vas, tu vas et tu viens / entre mes reins”. Alguns tradutores, inclusive, com toda a propriedade (eu não sou tradutor de francês) vão suavizar a metáfora biológica intra-anatômica dizendo “quadris” no lugar de “rins”, tornando menos explícita a ideia de intercurso carnal. Essa opção na maneira de dizer até nos faz lembrar de Pro Dia Nascer Feliz, do Barão Vermelho, que tem um verso que é “no vai e vem dos seus quadris”, que a gente podia achar escandalosa, indecente, antes de entender o que se diz na música de Gainsbourg.

Mas o Edgard Sacandurra, guitarrista que compôs a música para o IRA tocar, quis mesmo ir na carne. Na Entre Seus Rins existe só o ponto de vista do homem, que está fazendo uma declaração de amor e passando uma cantada direta, ainda que indireta. Ele começa com “te amo / isso eu posso te dizer / como eu gosto de você”. Porque tem coisas que talvez ele não possa ou não deveria dizer ainda. Mas a cantada prossegue e a coisa vai esquentando: “seu beijo / minhas mãos em seu quadril / madrugada tão febril / ah, como eu gosto de você”. E há um clímax quando, depois de uma longa e bonitinha declaração de amor, não se aguenta e diz o que não podia dizer no início: “me deu um dedo, eu quis o braço e muito mais / agora estou a fim / de ficar entre seus rins”. Sensacional!


Entre Seus Rins

Te amo, isso eu posso te dizer
Como eu gosto de você
Como eu gosto de você

Te quero, isso é tudo que eu sei
Que eu gosto de você
Ah! Como eu gosto de você

O que eu sinto não é difícil explicar
É o amor como uma fonte a jorrar... pura emoção

E o meu sonho nem consigo me lembrar
Mas o certo é que você estava lá
Sonho real, sonho real

Seu beijo, minhas mãos em seu quadril
Madrugada tão febril
Ah! Como eu gosto de você

Meu exílio é em seu corpo inteiro
És meu país estrangeiro
Ah! Como eu gosto de você

Me deu o dedo eu quis o braço e muito mais
Agora estou a fim de ficar entre os seus rins

De ficar entre os seus rins
De ficar entre os seus rins
De ficar entre os seus rins
Seus rins

Link para Je T'Aime Moi Non Plus, letra e canção:

http://letras.terra.com.br/serge-gainsbourg/61635/



Até a próxima!

Luis Felipe

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Os M&M's Marrons


Pelo menos dois fatos relacionados à banda americana Van Halen eclodem aqui neste blog de maneira bem significativa. Um deles foi uma frase num clipe, ou melhor, o clipe todo. Lembro de ter assistido a esse clipe na MTV brasileira quando ela recém tinha vindo pra cá, e eu tinha talvez uns 14 ou 15 anos. Pode-se dizer que um clipe muda a vida de uma pessoa? Seria exagero ou não, podemos nos perguntar. Porque sempre alguma coisa que a gente lê pode condicionar, se eu não estiver exagerando de novo, um destino. Da mesma maneira como há obras que transformam o mundo, aquilo a que a gente se expõe pode direcionar a nossa vida. Uma vez que o futuro não está feito, trata-se somente de possibilidades do que pode ou não vir a ser, a cada instante podemos refazê-lo. Isto significa, bem dizendo, mudar a vida. Direcioná-la para um caminho. E como diz o provérbio, uma escolha implica em exclusões. E por nada de coincidência que o clipe a que me refiro é da “balada” hardrock Right Now; e dentro do clipe – onde aparecem frases que dialogam com o título – uma frase me marcou bastante: “right now maybe we should pay attention to the lyrics”. E do que se trata mesmo o cifraamodaantiga?

O outro fato é o que dá título a essa postagem, a história dos M&M's marrons. Para quem não sabe, os meninos do Van Halen costumavam colocar no contrato dos shows uma cláusula ridícula que proibia a produção de lhes servir M&M's marrons. Isto mesmo, o chocolatinho oval colorido por fora. Frescura? Não. Diziam que isto lhes garantiria que a produção tivesse mesmo lido todo o contrato, cada vírgula. Certa vez, a que fez esta história conhecida do público, numa apresentação que fariam no Colorado, eles se deram conta de que os organizadores não haviam lido o contrato porque tinha no camarim onde estavam começando a se instalar uma tigela cheia de M&M's, principalmente marrons. Nisso o vocalista nesse período, David Lee Roth, sai do camarim e quebra o palco a pontapés.... Quem gosta de emitir julgamentos precipitados já vai dizer, provavelmente – “que caras mais idiotas, onde já se viu, quebrar um palco por causa de da cor do açucar de confeiteiro...”. Mas a história verdadeira é outra. Eles tinham equipamentos caros e pesados e, nos primórdios das grandes produções, the early eighties, pouca gente oferecia condições para um show de peso, em todos os sentidos, instalar-se com segurança. Assim como a cláusula dos M&M's marrons, havia cláusulas a respeito da estrutura de palco para suportar o equipamento e os músicos, o que, se pode ser destruído a pontapés, não estava de acordo com o que fora estabelecido no contrato. Foi um custo para a organização do espetáculo ter que reconstruir o palco, mas uma economia para todos (porque evitou danos maiores) e se tornou um causo curioso, contado a cada vez diferente, para a história do rock'n'roll.

E se o “pay attention to the lyrics” tem, evidentemente, tudo a ver com o blog em que se analisa de perto letras de música, prestando cuidadosa atenção, pergunta-se: o que a história dos M&M's marrons tem a ver com o blog? Bom, aí é meu desbafo. Acho que não leem o blog, ou não percebem as “cláusulas ridículas”, como a dos M&M's no contrato do Van Halen, que todo texto tem. Porque eu escrevo barbaridades, absurdos. Volta e meio acho que terá gente me xingando - “que absurdo, comparar alhos com bugalhos!” Mas não, alguns elogios de gente próxima, amigos e só. Mas tudo bem. A história dos M&M's contada aqui também vale mais do que esse desabafo.

E para voltar ao que interessa, Righ Now é um clássico, não só americano, ou do rock (nem só do hardrock). É um clássico geral. Não marca uma época, talvez pelo estilo, somente, mas pela letra, por outro lado, pode sempre ser executada que sempre será contemporânea. E justamente porque fala disso – “agora mesmo” - esse presente que a gente pensa que pode apreender, porque é o agora, é próximo, não depende da memória como o passado, nem da prospecção como o futuro, e ainda assim é tão fugidio... Tanto que se diz ali na música “catch that magic moment, do it” (agarre este momento mágico, faça!). E o presente é mágico porque é o único tempo que realmente existe em termos de possibilidade de ação. Sim, passado e futuro, talvez até o próprio presente, vão estar em relação de causa e consequência, de estimativa e resultado; mas é só no presente que a ação é possível.

Há, nesse sentido, uma proposição construída para músicos em alguns dos versos: “se você perde a pulsação, perde o ritmo / e nada volta para o lugar / o que se perdeu por um segundo / sai um pouco do seu passo”. Essa ditadura do tempo sincronizável realmente existe na música executada, pois, para dois ou mais tocarem juntos, precisam seguir a mesma pulsação, manter o mesmo ritmo, estar no mesmo passo. Mas e se a gente se perde no compasso, como é que fica? A solução está no próprio tempo dito “agora”, pois o agora é sempre a possibilidade de se refazê-lo nesse próprio instante: “got to turn, come on, turn this thing around / right now” (algo como “tem que resolver, vamos, resolva agora mesmo”), porque o músico que se perde pode sempre retornar e acompanhar os colegas exatamente onde eles estão. Não é necessário, nem na música nem na vida, fazer Da Capo. Mas muito mais do que fazer sentido para músicos, a metáfora de retomar não de onde se parou, mas a partir de onde se está, faz sentido para todos, pois a vida é isso mesmo, um eterno recomeço a cada instante. O que constitui passado e futuro, mesmo implicando relações de causa e consequência, é a ação no presente.

Fiz essa postagem pensando na história dos M&M's, porque na postagem anterior eu disse coisas horríveis (disse que um não tem talento, disse que o outro era bêbado e louco de rua, chamei o outro de feio), e mais honestamente do que apagar a postagem, como se fosse possível simplesmente “apagar os erros cometidos”, eu ajo com outra postagem, tentando alcançar a sincronia.

Curtam aí o clipe do Van Halen, prestando atenção tanto à letra quanto as frases mostradas no clipe. Façam isso "agora mesmo"! É uma sugestão...


Right Now

Don't wanna wait 'til tomorrow
Why put it off another day?
One by one, little problems
Build up, and stand in our way. oh

One step ahead, one step behind it
Now you gotta run to get even
Make future plans don't dream about yesterday, hey!
Come on turn, turn this thing around

(right now!) Hey! it's your tomorrow
(right now!) Come on, it's everything
(right now!) Catch your magic moment
Do it right here and now
It means everything

Miss a beat, you lose a rhythm
And nothin' falls into place
Only missed by a fraction
Slipped a little off your pace

The more things you get, the more you want
Just trade in one for another
Workin' so hard to make it easy
Got to turn, come on
Turn this thing around

(right now!) Hey, it's your tomorrow
(right now!) Come on, it's everything
(right now!) Catch that magic moment
Do it right here and now
It means everything
It's enlightened me
Right now
What are you waitin' for?
Right now

(...)

It's what's happening
Right here and now
Right now, it's right now
Tell me, what are you waitin' for?
Turn this thing around

Até a próxima!


Luis Felipe