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sábado, 20 de novembro de 2010

O que é o samba?

Em Samba A Dois (Marcelo Camello, Los Hermanos), canção da qual já falei aqui brevemente, propõe-se a pergunta “quem se atreve a me dizer do que é feito samba?” A pergunta é pertinente, sim, mas curiosamente a ordem pergunta-resposta nesse grande diálogo que é a tradição do samba não é necessariamente linear nem cronológica. O tempo não existe só cronologicamente e os sentidos estão aí no mundo, tanto que pode existir uma resposta na realidade para uma pergunta que ainda não foi feita. Responder a uma pergunta de tal natureza é apenas tornar evidente uma resposta que talvez já “existisse” antes mesmo de ser verbalizada. E quem responde à questão de Samba A Dois é, na verdade, uma tradição longa de sambistas, a maioria antes da própria pergunta ter sido feita.

Claro, há de se fazer referência ao fato de que a banda Los Hermanos não é um conjunto de samba, mas uma banda de rock, digamos assim, e que reuniu diferentes influências e estilos compondo, bem dizendo, canções híbridas. Nesse sentido, a pergunta “quem se atreve a me me dizer do que é feito o samba?” pode ser entendida como um desafio, tipo “estarei ousando dentro do samba, que não é nem o meu estilo, então quero ver quem é capaz de me dizer que não é samba”. Mas o que estou propondo é deixar essa interpretação de lado, pelo menos por enquanto, e inscrever a pergunta feita em Samba A Dois na tradição que define o samba, justamente porque ela dialoga com as respostas que existem em letras de sambas tradicionais. Tanto a ideia da pergunta como desafio quando a ideia da pergunta dialogando com a tradição coexistem, mas nos ocuparemos primeiro com a primeira possibilidade interpretativa.

Posso dizer, com pouca chance de estar errando muito, que há uma tradição dentro de letras de samba cujo motivo é, justamente, definir o próprio samba. Nisso o samba pode se configurar até como uma prática discursiva, aproximando-se portanto das ciências humanas que precisam definir-se pois não têm um objeto “concreto”, “real” e “material” observável fora do discurso. Já se diz em Nó Na Madeira, de João Nogueira (que é uma canção autorretrato altamente metafórica, interessantíssima de se analisar), que “o samba é ciência”. Claro, isto evoca uma discussão eterna entre as “obviamente” diferentes em tudo arte e ciência, e ninguém parece reivindicar muito seriamente que “samba é ciência”, talvez, a não ser metaforicamente. Mas se tomarmos o conjunto de letras de samba, enquanto prática discursiva que, inclusive, cria ela própria e uma cultura do samba, isto é, cujos sentidos não são somente metáforas, mas também sentidos do real produzidos, então como é possível se estabelecer um limite, senão relativo, entre ciência e arte?

Mas vamos deixar de lado a minha pergunta, menos interessante, e voltar à pergunta em Samba A Dois. Existe essa tradição de se definir o samba na letra de samba. Meus conhecimentos limitados não me permitem reconhecer todas as letras existentes desde os primórdios do nada e do nunca, mas posso apontar algumas canções que conheço. Em Feitio De Oração, por exemplo, de Noel Rosa e Vadico, instaura-se o sentido de o samba ser o que se exprime da dor sentimental, da dor de amor, como arte poética ainda herdeira do Romantismo:

“batuque é um privilégio / ninguém aprende samba no colégio / sambar é chorar de alegria / é sorrir de nostalgia / dentro da melodia (...) O samba na realidade / não vem lá do morro / nem vem da cidade / quem suportar uma paixão / verá que o samba então / nasce do coração”.

Ainda nessa mesma canção, cujo título - Feitio De Oração - diz que o poeta canta o samba como se dissesse uma prece, tal sentido é de certa forma retomado em Samba Da Benção, de Vinícius de Moraes e Baden Powell: “é preciso um bocado de tristeza / se não não se faz um samba não” (...) fazer samba não é contar piada / quem faz samba assim não é de nada / o bom samba é uma forma de oração”

E a “forma de oração" do Samba Da Benção faz referência quase direta à ideia de prece proposta em Feitio de Oração, acima citada, mas mais diretamente ao trecho “... cantar com satisfação e harmonia / esta triste melodia / que é meu samba / em feitio de oração”. Essa ideia de ligação com o transcendente também percorre um bom punhado de sambas, como por exemplo “samba é tudo o que Deus abençoou” (Samba É Tudo, Celso Fonseca e Ronaldo Bastos); “o samba (...) é o grande poder transformador” (Desde Que O Samba É Samba, Caetano e Gil). E mais ou menos dentro dessa ideia de ligação com o transcendente, com o divino até, a composição Poder Da Criação, de João Nogueira, “teoriza” sobre a inspiração, sendo esta advinda de uma “força maior”:

“não, ninguém faz samba só porque prefere (...) não precisa se estar feliz nem aflito / nem se refugiar em lugar mais bonito / em busca da inspiração” (...) faz pensar... que existe uma força maior que nos guia (...) e o poeta se deixa levar por essa magia / e o verso vem vindo e vem vindo uma melodia / e o povo começa a cantar”.

Existem sambas que vão se autodefinir pela questão da conduta do sambista frente à "sociedade do espetáculo", como em Samba É Tudo, acima citada, mas mais especificamente no trecho “ser sambista é muito mais / do que ser notícia nos jornais (...) o bom samba é o que traz / na cadência a doce pulsação da vida / pra fazer um samba a mais / é preciso mais que pretensão”. Ou seja, se me é dado o direito de explicar, o bom sambista não vai buscar pela fama, mas pela essência, pela poesia intrínseca a tal “doce pulsação da vida”. Interessante que pulsação tem, pelo menos aqui, dois sentidos, o de pulso ao qual o ritmo segue, e a pulsação dos batimentos cardíacos, que é para algumas espécies animais sinônimo de vida (se tem pulsação é porque está vivo).

A forma como se toca o samba, ou melhor dizendo, os instrumentos escolhidos para se tocar um samba, também pode ser uma forma de definição. Nesse sentido é estericamente hilariante o diálogo que se estabelece entre Samba A Dois, lá do início do texto, e Argumento, de Paulinho da Viola. Samba A Dois é praticamente um samba tradicional, musicalmente falando. Mas a banda que a compôs toca a canção com guitarra distorcida, baixo e bateria, entre outros. Em Argumento o sambista diz “tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim (...) olha que a rapaziada está sentindo falta / de um cavaco, de um pandeiro e de um tamborim”. A ideia de "desafio" sugerida no segundo parágrafo e retomada somente agora, nesse diálogo entre as músicas que eu estou propondo, diz respeito mais a “quem se atreve a me dizer” como argumento, pois ao mesmo tempo que a pergunta questiona, também sugere que o desafiado, na verdade, não se atreve a dizer do que é feito o samba, porque autoridade não é. Mas cuidado: nada disso do que estou dizendo existe fora desse texto, porque a canção de Paulinho da Viola é bem anterior a do Los Hermanos, e uma não se refere a outra, pelo menos não intencionalmente, supomos. E Paulinho da Viola seguramente é autoridade no samba. Contudo, relacioná-las pela diálogo estabelecido na tradição produz tranquilamente este efeito de pergunta e resposta que se complementam.

Existe também a ideia de que o samba é uma missão a ser continuada como em Não Deixe O Samba Morrer (Edson Conceição e Aloísio da Costa), em que se diz - “antes de me despedir / deixo ao sambista mais novo / o meu pedido final / não deixe o samba morrer / não deixe o samba acabar / o morro foi feito de samba / de samba pra gente sambar (...) o meu anel de bamba / entrego a quem mereça usar”. E este verso “o morro foi feito de samba”, que coloca o que seria um adjunto adverbial de lugar (o samba foi feito no morro) no lugar de sujeito da passiva, ao propor essa inversão, está naturalmente dizendo alguma coisa. E dizer que o morro foi feito de samba significa dizer que a cultura do morro se construiu pelo samba, pelos discursos que o samba veicula sobretudo nas letras. Ou seja, é uma noção de cultura já bem avançada, diferente daquela em que o lugar é determinante da cultura e seus efeitos, mas pelo contrário, a cultura do morro são os próprios discursos do e sobre o morro, e o samba é o registro discursivo, desde que musical, da cultura do samba de morro.

Se quisermos retomar a pergunta inicial para, talvez, propor uma resposta, eu diria que uma parte das letras de samba é feita, justamente, desse diálogo com a tradição: o samba que se define a si mesmo, assim como o samba que se pergunta quem é - e se autoafirma. Também disto é feito o samba. E tenho dito!

Para brindar este texto deixo o link de vídeo do Youtube com uma gravação histórica dos Novos Baianos, cantando o samba-exaltação Brasil Pandeiro, de Assis Valente. Deixo também uma confissão – eu me entusiasmei escrevendo esse texto e depois me emocionei ouvindo esta música.


http://www.youtube.com/watch?v=ojeJ-DCMtls


Até a próxima!

Luis Felipe


Crédito da imagem: caricatura de Noel Rosa por Cristiano Teles: http://searrependimentomatasse.blogspot.com/search/label/caricas

Um comentário:

Anônimo disse...

Grande, grande, grande!!!!
É disso que eu tava falando!!
Mestre Paulinho (mesmo que brevemente) dando as caras por essa casa!
Excelente esse texto, irmão, devo confessar que também me empolguei lendo o texto e vendo o vídeo!