(Da série Problema de Gênero)
Dente De Ouro é uma ladainha de capoeira, e tem várias versões que são atribuídas a diferentes “autores”, que na verdade são cantadores e continuadores de uma tradição oral que preserva a memória de ladainhas vinda desde os escravos. Isto é, a história das ladainhas se confunde com a história da capoeira, e tudo isso teve origem na escravidão. O site www.capoeira-infos.org atribui a autoria a diferentes “autores” ou cantadores como Mestre Pastinha numa das Fontes, e a Mestre Canjiquinha e Mestre Valdemar em outra. Curiosamente, numa das fontes, diz-se que a ladainha pode ter sido inspirada na canção de João de Oliveira, cantada por Francisco Alves, de 1929, chamada de Quem Eu Deixar Não Quero Mais, que tem uma estrofe que é bem assim: "tens um dente de ouro / fui eu que mandei botar / vou te rogar uma praga / para esse dente quebrar".
A versão que parece ser a mais seguida pelas rodas de capoeira, e que por isso se torna a mais “autêntica”, é aquela atribuída a Mestre João Pequeno de Pastinha:
Dente De Ouro
Ela tem dente de ouro
Ela tem dente de ouro
Ela tem dente de ouro
Ora meu Deus
Fui eu que mandei botar
Vou rogar nela uma praga
Para esse dente se quebrar
Ela de mim não se lembra
Ora meu Deus
Nem dela vou me lembrar
Menina, diga seu nome
Que eu também já digo o seu
Eu me chamo Chita Fina
daquele vestido seu
Casa de palha e palhoça
Se eu fosse o fogo eu queimava
Toda mulher ciumenta
Se eu fosse a morte eu matava
Camaradinha, viva meu Deus....
Esta versão varia pouco da versão atribuída a Mestre Canjiquinha e Mestre Waldemar:
Iê
Ela tem dente de ouro
Ela tem dente de ouro
Foi eu quem mandei botar
Eu vou rogar uma praga
Pro dente se quebrá
Dela eu não me lembro
Ó meu Deus
E não quero me lembrar
Das horas amargurada, oi iá iá
Com ela eu conversava
Na beira de uma praia
Em um bonito luar
Ela sempre me jurando
Ó meu Deus
Que a outro não amava
Vim da Ilha de Maré
Jogar em Santa Rita
Duas coisas neste mundo
Que meu coração palpita
É um berimbau roseiro
E uma moça bonita
Camará
A banda brasileira de blues Blues Etílicos gravou a ladainha, lá pelos idos da década de 1990, realizando um feito realmente impressionante: mesmo sendo um banda de blues no sentido tradicional, mas que experimentava com as cores da brasilidade (com várias músicas cantadas em português, o que poucos já fizeram, como Celso Blues Boy e André Christovam) eles radicalizaram na mistura de gêneros. E gravaram uma ladainha de capoeira na tentativa de fazer um blues brasileiro mesmo, isto é, um tema brasileiro em sentido amplo, a estrutura “melódica” da ladainha, com não muito mais que as notas na distância de um tom entre uma linha “melódica”, desde que monotônica, e outra.
A idéia da Dente De Ouro foi, sem querer poupar elogios aos meninos do Blues Etílicos, genial por diversos motivos. Se pensarmos, por exemplo, que o blues dos estados sulistas americanos, na sua simplicidade pentatônica, derivava dos chants dos escravos das plantações de algodão do período colonial escravagista, e que as ladainhas da capoeira seriam, mais ou menos, o mesmo tipo de manifestação dos escravos daqui, então juntar a ladainha com o blues não era simplesmente fazer mistura de gêneros, mas reunir irmãos separados há cerca de 500 anos em diferentes navios que traficavam pessoas da África para servir como escravos nas Américas. O que eles juntaram e que foi separado no decorrer desse meio milênio, como ocorre com as manifestações artísticas, foi se modificando com o tempo.
O blues se sofisticou e se aprimorou, dos chants nasceram os negro spirituals, o jazz, o próprio blues, e uma penca de ramificações de tudo isso. Dos ritmos africanos, no que estes se misturaram com os ritmos portugueses, entre outros, foram nascendo o maxixe, do qual vieram o samba e o choro. Mas as ladainhas propriamente ditas mantiveram-se como um registro oral na memória da cultura (no sentido de coisa transmitida por tradição oral) das ladainhas originais, talvez. Essa memória popular é algo impressionante. Não se imagina que um texto oral seja mantido rigorosamente idêntico e imutável através dos séculos. Pelo contrário, a tradição oral reconhece a nova situação em que se reconta uma história acrescentando-lhe coisas ou as abreviando.
Mas vindo adiante, fazer de uma ladainha um blues é também algo impressionante. A Dente De Ouro da Blues Etílicos, por ter juntado ladainha e blues, é uma espécie de justiça histórica, uma mera recriação cujas referências são extremamente óbvias, ao mesmo tempo que no resultado da soma é uma criação genial. Tanto que não se pode pensar em fazer isso de novo sem que seja, agora sim, um plágio. Dente De Ouro foi uma sacada muito autêntica justamente pelas coisas já existentes que foram juntadas. A letra cantada pelo Blues Etílicos é uma forma simplificada da ladainha apresentada por Mestre Pastinha:
Ela tem dente de ouro
Ela tem dente de ouro
Ai meu Deus foi eu quem mandei botar
Vou rogar nela uma praga
Pra esse dente se quebrar
Ela de mim não se lembra
Ai meu Deus nem dela vou me lembrar
Ela de mim não se lembra
Ai meu deus nem dela vou me lembrar
Casa de palha é palhoça
Se eu fosse fogo queimava
Toda mulher ciumenta
Se eu fosse a morte eu matava
O próprio grande Vinícius de Moraes, após uma longa jornada de trabalhos diplomáticos em que conheceu o mundo, vinhos e queijos, afrouxou a gravata, quer dizer, queimou a gravata e abriu a camisa até quase o umbigo, mandou descer uma cerveja e uma porção de bolinho de aipim, e resolveu curtir a cultura brasileira mais de perto. Na verdade Vinícius não podia com cerveja porque sofria do mal de diabetes, então o que ele bebia era seu famoso “cachorro engarrafado”, o melhor amigo do homem, o uísque. Nesse período Vinícius compôs com seu parceiro Baden Powell, depois que este mostrou-lhe uma imitação de berimbau com o violão e uma melodia, uma canção em homenagem à capoeira. Berimbau tem um solo de violão que procura imitar o som do berimbau, assim como Dente De Ouro, do Blues Etílicos, tem um solo de guitarra na introdução cuja intenção é a mesma.
Os temas de Berimbau de Vinícius e Baden Powell são praticamente os mesmos que percorrem as ladainhas tradicionais, inclusive a Dente De Ouro: a moral, a traição, a luta, a tristeza entre outras coisas. Nesse sentido, pode-se supor que Vinícius não só conhecia o mundo, vinhos e queijos, como realmente se aprofundou em diferentes manifestações da cultura brasileira, como a capoeira e as ladainhas. Nessa canção, as frases melódicas são também inspiradas nas ladainhas, mas com uma pitada “bossa nova”: as frases monotônicas cantadas na distância de um semitom, causando aos ouvidos maior tensão. A parte mais melódica, que começa com “capoeira me mandou...”, por outro lado, já cumpria os preceitos da canção, embelezando o conjunto da música.
Berimbau
Quem é homem de bem não trai
O amor que lhe quer seu bem
Quem diz muito que vai não vai
Assim como não vai não vem
Quem de dentro de si não sai
Vai morrer sem amar ninguém
O dinheiro de quem não dá
É o trabalho de quem mão tem
Capoeira que é bom não cai
E se um dia ele cai cai bem
Capoeira me mandou
Dizer que já chegou
Chegou para lutar
Berimbau me confirmou
Vai ter briga de amor
Tristeza camará...
Links:
Baden Powell falando sobra a composição de Berimbau (e tocando) no programa Ensaio:
http://www.youtube.com/watch?v=j1sok3vvsBE&feature=related
Clipe de Dente De Ouro com Flávio Guimarães (harmônica) e Blues Etílicos:
http://www.youtube.com/watch?v=BqK7tj7KdDQ
Berimbau na voz do poeta, “Mestre Vina”:
http://www.youtube.com/watch?v=dwuGotQ2UI0&feature=related
Até a próxima!
Luis Felipe
P. S. A imagem é um selo brasileiro, mas para ser justo, copiei-o do site selos e filatelia: http://www.selosefilatelia.com/PastaLancamentos09/011.html
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