Aí está a grande questão da pós-modernidade. A discussão em torno do gênero sempre rende. A começar pelo conceito de gênero, que é muito abrangente. Sim, gênero é o que você quiser, e ponto. Há algum lugar em que isso se define melhor? Talvez no discurso acadêmico, pois a cada vez que se usa, precisa-se, justamente, delimitar o sentido. Mas a rigor, na prática do dia a dia, serve para qualquer coisa, desde a distinção entre “masculino” e “feminino” (e nesse uso é algo aproximado, mas não exatamente, a sexo masculino e feminino, macho e fêmea, respectivamente, que são conceitos, digamos, biológicos), tipos de textos, tipos de música; mas também pode-se chamar o tipo do automóvel de gênero (scooter, utilitário, SUV, monovolume, etc). E muito mais.
Essa abrangência de sentido nos coloca a seguinte questão – que significado, afinal, podemos entender a partir do termo “gênero”? Ora, se gênero é tudo isso que foi dito no parágrafo anterior, e muito mais, eu arriscaria dizer que, em um conceito abrangente, chamamos de gênero (no meio acadêmico ou não) aquilo que deve ser diferenciado. O gênero, seja lá do que for, tem “contornos” mais ou menos precisos, não necessariamente exatos. O problema de gênero, portanto, é quando se coloca o foco nesse “contorno” impreciso, esse espaço entre uma coisa e outra, quando elas são próximas. Porque nem tudo (ou quase nada) tem contornos precisos em termos absolutos.
Há muitos exemplos. A comida que não se encaixa muito precisamente em salgado ou doce, azedo, amargo, etc. O filme que não é absolutamente nem comédia, nem drama. A música que mistura os aparentemente irreconciliáveis (heavy metal e bases eletrônicas; rock'n'roll e samba, entre outros). O relacionamento que não é nem exatamente namoro nem somente amizade. E para piorar, a gente acha tudo isso ótimo. Claro, nem todo mundo acha tudo isso ótimo, porque sempre há os puristas, que reivindicam que tudo e qualquer coisa tenha contornos exatos, precisos e absolutos, para se localizarem no mundo e, por exemplo, irem num show do estilo de música que gostam sem se sentir ludibriados. “Tu chega lá e era show de música eletrônica”, já ouvi. E qual é a função dos ditos puristas. Justamente, fazer com que entre nós, pessoas, também haja a reprodução desse problema de gênero. Porque os puristas, ao reclamarem do que não está bem definido, evidenciam essa falta de contornos, ao mesmo tempo que podem se contradizer (o sujeito pode ser purista para música, mas não para filme... e assim por diante). Nem os puristas conseguem ser algo absoluto.
Podemos diagnosticar como tendo problema de gênero tudo o que você julgar “inclassificável”. Ou aquilo que dizemos que é “tão bom que não se encaixa num rótulo”. Acho que talvez poderíamos simplesmente aceitar que nem tudo se encaixa mesmo, nem tudo precisa ser rotulado, haja paciência. Mas nós, por sermos animais de linguagem, temos por hábito, obsessão, passatempo, e etc, a necessidade de ficar dando nomes para os fenômenos todos.
Mas onde entra a tal da pós-modernidade? Da seguinte forma: há não muito tempo, nós enquanto humanidade acreditávamos que as coisas tinham sentidos absolutos e que sempre era muito fácil diferenciar todas as coisas umas das outras. Designá-las em termos absolutos. Digo que era uma “crença” porque não necessariamente era algo verdadeiro, da realidade mesmo. Acontece que podíamos ignorar as sutilezas, e talvez até oprimir o surgimento do que não fosse entendido dentro de um rótulo preciso. Mas é fato que “bem” e “mal” já foram coisas muito mais precisas. Não são mais. São coisas relativas. Por exemplo, ao se dar esmola para alguém miserável, pensa-se fazer o bem, mas ao mesmo tempo pode ser o mal, porque se cria no que recebe uma dependência. Mas nem sempre, também, pois isso não pode ser dito que funciona assim absolutamente sempre. Cada caso é um caso específico. Difícil é generalizar. E para entender como essa falta de contornos, de sentidos precisos tem a ver com nosso modus vivendi, basta olharmos para um exemplo bem prático. Antes da luz elétrica, a luz solar determinava em termos absolutos o que era dia e o que era noite. O ritmo biológico de todos os animais, inclusive os humanos, era determinado pela luz do sol. Até o bem e o mal se baseavam na oposição luz do dia e escuro da noite. Agora nem dia, nem noite, nem bem nem mal já não reinam mantendo um sentido absoluto.
Com o advento da luz elétrica, ao longo de praticamente um século e meio, estendemos o dia. Estendemos tanto que agora, em muitos lugares não há distinção entre dia e noite. E o ritmo biológico da humanidade vai mudando, acompanhando as novas formas de trabalho e subsistência, por um lado, e de culto ao belo, regozijo, lazer, etc, por outro. Se vivemos numa época em que “não se tem horário”, pode-se trabalhar de noite e dormir de dia, pode-se ir numa rave que durará o dia e a noite, pode-se subverter a ordem do dia e da noite ou mantê-la; isso também acontece com outras coisas, todas. Essa falta de contornos precisos se reflete em várias coisas na nossa existência. Por isso que é uma condição da pós-modernidade. Não é algo que alguém “inventou” para atribuir sentidos relativos aos fenômenos. É uma condição da realidade em que vivemos. Até o átomo que era, na física, o último reduto da exatidão (átomo = indivisível), já não é mais certeza. As hipóteses sugerem que no interior dos átomos se tem ora vazio, ora caos. Complicado, né!? Isso tudo é condição da era em que vivemos, mas também contradição. A contradição caracteriza muito melhor a pós-modernidade do que qualquer outra coisa. Cada vez que surge algo que se quer “sem limites”, há quem reivindique os contornos seguros, para se saber onde estamos, com o que estamos lidando. Também é uma coisa nem sempre evidente o que vou dizer, mas é que certas mudanças às vezes levam alguns anos para se configurar, talvez décadas, mas sempre levamos muito mais tempo para compreender os fenômenos. Então, o que se percebe na dita “pós-modernidade” não começou agora. São mudanças que vêm se configurando há muito tempo, muito tempo mesmo. E que quando se chega num excesso, os sentidos gritam querendo ser compreendidos. A pós-modernidade é essa histeria de sentidos gritando. Durma-se com um barulho desses...
Para brindar essa postagem que inaugura uma série no blog, em que vou falar sempre de problemas de gênero na música ou na letra de alguma canção, vou começar com uma composição genial de Carlos Lyra:
Influência do Jazz
Pobre samba meu
Foi se misturando, se modernizando, e se perdeu
E o rebolado cadê?, não tem mais
Cadê o tal gingado que mexe com a gente
Coitado do meu samba mudou de repente
Influência do jazz
Quase que morreu
E acaba morrendo, está quase morrendo, não percebeu
Que o samba balança de um lado pro outro
O jazz é diferente, pra frente pra trás
E o samba meio morto ficou meio torto
Influência do jazz
No afro-cubano, vai complicando
Vai pelo cano, vai
Vai entortando, vai sem descanso
Vai, sai, cai... no balanço!
Pobre samba meu
Volta lá pro morro e pede socorro onde nasceu
Pra não ser um samba com notas demais
Não ser um samba torto pra frente pra trás
Vai ter que se virar pra poder se livrar
Da influência do jazz
Nessa canção, que ele chama de “sua primeira canção de protesto”, há uma crítica, mas não exatamente um crítica, uma brincadeira talvez, e que aponta para um problema de gênero naquele estilo. A Bossa Nova, embora muito se discuta, no final da discussão sempre alguém diz – é samba. Mas, ora, samba é um pouco diferente. E a Bossa Nova surge, justamente, como um híbrido, algo que não é nem exatamente samba, nem exatamente jazz. E a canção de Lyra faz também menção a outros estilos latino-americanos que acabaram sofrendo essa influência, mas que nem por isso souberam recriar um estilo híbrido, polêmico e fantástico como a Bossa Nova. Sob o termo "afro-cubano" há uma série de ritmos caribenhos que também já namoraram com o jazz americano.
Finalizando, se na letra ele diz fazer o protesto, a música contradiz. A música tem as características rítmicas, melódicas e harmônicas da Bossa Nova, isto é, tem um sincopado (quando os tempos fortes e fracos não são seguidos à risca), melodia escalar que exige uma harmonia às vezes dissonante. Ou seja, é uma composição inteligentíssima porque faz referência à questão do hibridismo do estilo, mas que apresenta também uma contradição proposital, pois usa na música uma coisa que rejeita na letra, criando, inclusive, uma certa graça, um efeito de humor. A percepção do artista para captar algo que está acontecendo no mundo, na realidade, e que ele transforma em arte, isso é genial. Em termos absolutos!
No link a seguir, a letra, a cifra, e vídeo com o Carlos Lyra apresentando a canção: http://www.cifraclub.com.br/carlos-lyra/influencia-do-jazz/
Até a próxima!
Luis Felipe