Em O que é o samba? eu tinha sugerido que existe um diálogo que percorre algumas letras de samba, em que uma pergunta tardia (o que é o samba?) teria vindo preencher essa lacuna das “respostas” que já existiam. Mas tais sambas eram respostas para uma pergunta assim tão pontual e que parece uma questão de prova de quinta série? Sim e não. Não na dobradinha automática pergunta-resposta, mas eram, sim, respostas para uma discussão que se fazia na cultura em que, em face a uma resistência à cultura do samba há coisa de mais ou menos um século, século e meio atrás, o samba, na voz de seus poetas, precisava se autoafirmar.
Desde o Pra Que Discutir Com A Madame (Haroldo Barbosa e Janet de Almeida) ou antes, que o samba vem batendo boca por aí, vem discutindo com a fidalguia de sucessivas gerações para impor seu valor. É muito curioso perceber em algumas letras como esse movimento na cultura do samba não passou sem se fazer notar. Houve, sim, uma necessidade de autoafirmação, pois, como se sabe, havia no Brasil lusitano um apego a uma ideia de nobreza aristocrática, e que se torcia no nariz para as manifestações do Brasil que estava ficando brasileiro. Essa mania de nobreza deixou resquícios muito fortes que aparecem até meados do século passado e não desapareceram completamente.
É do grande Ary Barroso o sintagma “Brasil brasileiro” (em Aquarela Do Brasil) que não tem absolutamente nada de redundante; é na verdade a afirmação do reconhecimento da cultura local ante à cultura do Brasil lusitano. E Ary ganhou o apelido, em um LP em sua homenagem, de “o mais brasileiro dos brasileiros”, porque, sendo um excelente compositor de orquestra e que podia ter querido cumprir uma carreira de compositor de música mais europeia (erudita), como fizeram Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos, Ary preferiu fazer música brasileira (popular) que se autoafirma tematicamente. Algumas dessas canções de Ary Barroso não são exatamente sambas, em termos de estrutura rítmica ou melódica (as versões posteriores podem até ser), mas pela sua temática acaba sendo citada nos compêndios como “samba exaltação”, coisa com a qual eu concordo absolutamente
Nesse sentido, os primeiros e os segundos sambas precisavam impor-se ante a cultura aristocrática (portuguesa, mas que achava mais chique parecer francesa) e que, como eu disse acima, torcia o nariz para essa coisa de batucada, samba, violão, pandeiro, e etc. A canção de Barbosa e Almeida diz:
“Madame diz que a raça não melhora / que a vida piora por causa do samba /madame diz que samba tem pecado / que o samba coitado devia acabar / madame diz que o samba tem cachaça /mistura de raça, mistura de cor / madame diz que o samba é democrata / é música barata sem nenhum valor.”
O poeta dá voz ao discurso da madame, até o momento que retoma a palavra e faz sua autoafirmação quando diz: “o samba brasileiro é democrata / brasileiro na batata é que tem valor”. É cabível ressaltar que o adjetivo “democrata”, quando na voz da madame, tem um aspecto negativo (ela não gosta de povo, de manifestações democráticas), e na voz do próprio poeta, na parte da autoafirmação, tem um valor positivo. E, como prevê o nome da canção, pergunta-se, “pra que discutir com a madame?”, pois esse bate-boca parece que não vai levar a nada. Sem propor uma resposta específica para essa pergunta, a canção por outro lado evidencia que a discussão de fato existia: havia uma parte do Brasil que não queria se assumir brasileira, porque era “ex-nobre”.
Na verdade, ser sambista nunca foi navegar em mar calmo. O samba já nasceu de um conflito étnico e sócio-cultural: a grosso modo, a canção portuguesa, que era de “bom tom”, e os batuques africanos, que nem tom tinham. É possível imaginar o tamanho do preconceito que havia por parte da fidalguia que descendia de portugueses, principalmente, em relação a uma cultura brasileira, negra e popular, de samba e de batuque. Estamos falando da música do final do século XIX e início do século XX, quando a república que havia sucedido a monarquia era ainda muito recente, em termos históricos, assim como o fim da escravidão, no papel, fora assinado havia apenas um ano antes da Proclamação da República.
Algumas décadas mais tarde, no que parecia que o samba já estaria se firmando no cenário cultural brasileiro num patamar de honra, outras influências, agora não mais européias, vieram lhe desestabilizar o trono duramente conquistado. A era da ascensão econômica dos EUA, que investiu na Segunda Guerra Mundial e lucrou, tornou seu cinema e sua música populares e passou a divulgar, através destas manifestações artísticas, o American way of life. É curioso que também os Estados Unidos procuravam afirmar sua cultura e identidade e tinham uns conflitos internos muito similares aos brasileiros. Antes dos EUA se tornarem potência econômica, militar e imperialista, por breves décadas, fomos nações irmãs (na época da Guerra Fria viramos o “primo pobre”). E o samba sofreu com a influência americana, como também se pode observar em algumas de suas letras.
Em Agoniza Mas Não Morre, de Nelson Sargento, fala-se justamente desse “abalar de estruturas” que sofria volta e meia o samba. Diz o poeta: “samba; negro, forte, destemido / foi duramente perseguido / na esquina, no botequim, no terreiro / samba; inocente, pé no chão / a fidalguia do salão / te abraçou, te envolveu / mudaram toda a tua estrutura / te impuseram outra cultura / e você não percebeu”. O samba de Nelson Sargento tem eco na inspiradíssima Influência Do Jazz, de Carlos Lyra (“pobre samba meu, foi se misturando, se modernizando e se perdeu”). Claro, é importante lembrar que Carlos Lyra, para bem ou para mal (para bem, na minha opinião) já é da turma que “corrompeu” o samba de raiz, ainda que o fizesse com a mais sofisticada autoironia gerando algo muito bom.
A tal da influência americana teve efeitos contundentes, e é a ela que se atribui o surgimento da bossa nova, na mistura do ritmo do samba com harmonia do jazz. A partir desse novo movimento, a letra de samba que contém algo de autoafirmação persiste, só que agora não mais ante uma pretensiosa ex-aristocracia ultrapassada, mas ante ao que era americano, moderno e cult. Entretanto, embora os sambas originais ainda estivessem sendo feitos, muitas das letras que embarcaram nesse novo movimento de autoafirmação não são rigorosamente sambas.
Tem-se, por exemplo, a bossa Só Danço Samba, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes: “só danço samba, só danço samba, vai”, e que estabelece oposição a ritmos estrangeiros “já dancei o twist até demais, mas não sei, me cansei do calypso ao tcha-tcha-tchá”; a Chiclete Com Banana, composta pelo sambista Gordurinha e popularizada na versão tropicalista de Gilberto Gil: “só ponho be bop no meu samba / quando o Tio Sam pegar no tamborim / quando ele pegar no pandeiro e no zabumba / quando ele entender que o samba não é rumba”; o samba mesmo Brasil Pandeiro, de Assis Valente: “eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar / o Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada (...) na Casa Branca já dançou a batucada de io-iô, ia-iá (...) há quem sambe diferente / outras terras, outra gente / um batuque de matar”, que nos chegou na voz de Baby Consuelo, com os Novos Baianos.
Claro, tudo isso sem nunca esquecer de Carmem Miranda e Zé Carioca (que eu acho que não comentaria muito bem, já que o meu negócio é falar de letras de música, mas vou me arriscar a dizer uma bobagenzinha), que foi uma espécie de “troca” injusta, especialidade dos americanos desde então. Nós demos a pequena notável, uma brasileira meio portuguesa pra servir, bem ou mal dizendo, como um tótem vivo do que se pensava ser a brasilidade, mas que era, enfim, uma mulher de carne e osso. E recebemos em retorno um papagaio malandro de desenho animado. Antes nos tivessem dado a Jessica Rabbit...
Todas esses conflitos e a necessidade de autoafirmação do samba e do sambista ecoam por aí em diversas letras de samba. Na canção 14 Anos, de Paulinho da Viola, fala-se exatamente do que foi o status do sambista há algum tempo: “mas a minha aspiração / era ter um violão para me tornar sambista / mas o meu pai me falou / sambista não tem valor / nessa terra de doutor (...) o meu pai tinha razão”. Em Eu Sambo Mesmo, de Janet de Almeida, faz-se referência aos que talvez rejeitassem o estilo musical, e a canção cumpre seu papel de fazer autoafirmação dizendo que estes, no fundo, queriam estar sambando: “a minoria diz que não gosta, mas gosta / e sofre muito quando vê alguém sambar / faz força, se domina, finge não estar / tomadinho pelo samba, louco pra sambar”.
Tudo isso aconteceu até o ponto em que o samba pareceu dar-se alta da terapia, isto é, sem exprimir tanto a necessidade de se autoafirmar perante quem aparentemente o ameaça, mas sem nunca perder o cacoete da autoafirmação. Nesse sentido há umas letras de samba onde se nota isso, como em Só O Samba Me Domina, de Chico da Silva: “não há ninguém no mundo / que me faça perder a cabeça / só o samba me domina / por incrível que pareça”; Tem Mais Samba, de Chico Buarque: “vem que passa o teu sofrer / se todo mundo sambasse / seria tão fácil viver”; e a A Força do Samba, de Luiz Grande: “o tempo vai passando / e o samba vai seguindo / o povo está feliz cantado, sambando e sorrindo / a assim vamos nós / tirando esse som / que de dentro do peito nos sai / o samba balança mas não cai”, entre muitos outros exemplos possíveis. Ironicamente, parece que os sambas que estavam efetivamente marcando seu espaço é que tiveram mais força. Força ao samba de hoje e sempre!
Eu Sambo Mesmo, com o então jovem João Gilberto (vale a pena ver a sequência toda, que é de um único show):
A ilustração é um quadro de Caribé, obra que se intitula Roda de Samba. (com a contribuição do leitor Alexandre Jr.).
Até a próxima!
Luis Felipe
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