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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

"Altos" Retratos


Autorretratos são obras recorrentes entre artistas de todas as materialidades, inclusive entre músicos. Os que fazem sua imagem distorcida, para bem ou para mal, são os melhores ou, melhor dizendo, a única possibilidade. Quem é capaz de descrever a realidade? A realidade aparente? A realidade objetiva? E o que é a realidade? Porque imagem de algo ou de alguém é sempre uma representação. E valer-se do culto ao belo – a arte - para dizer-se feio – o autorretrato - é o que há! A auto-imagem piorada pode ir por duas vias interpretativas: a irônica ou a realista estritamente denotativa, se é que isso é possível. Para dar um exemplo bem claro: Chico Buarque, em Até o Fim, embora talvez não tivesse a intenção da ironia, e nós conhecendo sua genialidade, seu sucesso e seus enfrentamentos, não conseguimos ver Até o Fim senão como ironia, como uma obra-prima da auto-ironia. Se o tal do anjo safado, o chato do querubim da tradição drummoniana, determinou que ele, o genial Chico, seria todo ruim, o que sobra pra nós?
Falando em autorretratos, ou melhor, em altos autorretratos, na medida em que estes podem estar, digamos “desregulados”, “desnivelados” da sua imagem verdadeira, se é que isso existe, convenhamos que o se dizente muito bonitinho ou ajeitado não serve pra nada, nem pra rirmos. Melhor é sempre quando nos deparamos com o autorretrato de um autor que contém algo como ironia, algo que nos ponha a dúvida. Somente aí pode residir algo de verdadeiro. Nada que é aparentemente bom demais é de verdade. Embora eu goste muito do Erasmo Carlos, “ vou dar uma festa, sou o dono da festa, pertenço aos dez ma-a-a-a-ais” não é bem o que a gente quer ver numa canção, um autorretrato cujo eu-lírico fique se gabando de seus cabelos até os seus sapatos. Quem precisa de autoafirmação assim que vá ver o psicanalista. Até porque a diferença entre o eu da canção, que é personagem-narrador, e o autor, pode ser enorme, então, por que fazer uma letra do tipo “se ninguém gava, Zeca gava”? Fica uma bosta. O autorretrato é a transposição na materalidade artística de algo em si mesmo, físico ou psicológico, que intimamente incomoda seu criador . O autorretrato serve para fazer sobressair os defeitos, e não qualidades. Nesse sentido, autorretrato e caricatura de si são coisas extremamente redundantes. Os outros que digam, se for o caso, que não coincidem criador e criatura, sendo esta a figura própria do criador na sua própria concepção.
Mas eu queria mesmo era falar de um compositor e poeta maldito, e que influenciou uns que queriam ser malditos. Tá certo, há muitos malditos, mas nenhum mais maldito que Sérgio Sampaio, indiscutivelmente. E na medida em que ele era maldito e produzia autorretratos, em composições “quase pessoais”, “quase autobiográficas”, fez parte de uma linhagem poética, a de Augusto dos Anjos: “sofro, desde a epigênese da infância / a influência má dos signos do zodíaco”. Falando em signos, uma curiosidade: os sonetos de Augusto dos Anjos foram publicados, tardiamente em relação a sua produção, há quase um século. A conhecida Born Under A Bad Sign, blues de Albert King, data de 1967, nos Estados Unidos. Não há referência nem influência, nesse caso, talvez uma coincidência separada por várias décadas, língua, cultura e materialidade artística. Talvez! O que há, de fato, em comum entre Albert King, Augusto dos Anjos, Sérgio Sampaio (e outros de que ainda vou comentar) são “ecos malditos”, que parece título de “filme de terror”, que é o título de uma composição de Sérgio Sampaio.
Mas para cumprir com o meu métier habitual, vou lançar a hipótese de uma referência. Conhece-se bem as influências musicais de Los Hermanos – desde o samba e a MPB, passando pelo ska, o harcore, o tudo-é-rock'n'roll, o reggae e até orquestra de pífaros. Não se fala muito, não necessariamente, nas “influências” que aparecem nas letras. Mas pode-se cogitar sobre as referências textuais.
Cara Estranho, que é, muito provavelmente, autorretrato de Marcelo Camello, e quer ele saiba disso ou não, paga os devidos tributos referenciais a mais de uma canção de Sérgio Sampaio. E olhem que isso é elogio pra caramba! Principalmente para um dos “feios, sujos e malvados” meninos dos Los Hermanos, que se inconformaram com o sucesso de Anna Júlia, que os fez “queridinhos” do Brasil, e por isso nunca mais fizeram a barba nem passaram mais a roupa quando iam se apresentar. Em algum ponto eles até conseguem ser “malditos”. Mas, lamento informar, parecem não ter a sina da desgraça. Se isso é bom ou ruim, não sei; é relativo. Sérgio Sampaio, por outro lado, viveu uma vida normal sendo meio louco, no bom e no mau sentido, e por conta disso passou até maus bocados, chegando em algum momento a situações de autodestruição em virtude do alcoolismo, e consequentemente de mendicância.
Uma diferença fundamental que existe entre Cara Estranho e alguns dos possíveis autorretratos de Sampaio, para começar, é que a composição de Camello é em terceira pessoa. Antes de isso ser um problema para análise, trata-se de uma estratégia na forma de dizer nem tão incomum, que é falar de si na terceira pessoa, como se ele mesmo se visse objetivamente de fora. Começa com os versos “olha só... que cara estranho que chegou / parece não achar lugar / no corpo em que deus lhe encarnou”, criando a imagem do sujeito desajeitado. Sérgio Sampaio, por outro lado, em Velho Bandido, por exemplo, diz tudo na primeira pessoa: “eu que só tenho essa cabeça grande / penso pouco, falo muito e sigo pra adiante”, e em Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua, embora na primeira pessoa, usa como estratégia de dizer atribuir o ponto de vista a terceiros: “há quem diga (...) que eu fugi da briga / que eu caí do galho / que eu não vi saída / quando o pau quebrou”. E saindo do sujeito desajeitado, passando para essa referência à briga, o narrador de Cara Estranho vai dizer, ironicamente talvez, que o ele é o ingênuo ganhador: "será que ele vai perceber / que foge sempre do lugar / deixando o ódio se esconder (...) que ganha a briga sem suar / e ganha aplausos sem querer”.
É interessante que Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua virou marcha de carnaval, praticamente, só por causa da letra e do refrão, e que Cara Estranho não tem nada a ver com carnaval, é uma música pesada. Mas essa referência a carnaval vai aparecer irremediavelmente em outras composições de Marcelo Camello, com os Los Hermanos ou já em carreira solo. O “meu bloco” parece ecoar em O Bloco Do Eu Sozinho, título de CD dos Los Hermanos, e uma das faixas é Todo Carnaval Tem Seu Fim, que tem uma letra ótima, que mexe justamente, entre outras coisas, com a idéia de se repensar os grandes clichés (“toda banda tem um tarol, quem sabe eu não toco”) e as rimas óbvias (deixa eu brincar de ser feliz / deixa eu pintar o meu nariz”). E outra, Samba A Dois, também de Camello com os Los Hermanos: “o meu bloco tem sem ter e ainda assim / sambo bem a dois por mim / bambo e só, mas sambo sim / sambo por gostar de alguém”, que na sua indefinição e ambiguidade ("tem sem ter") tem algo dos versos da "marcha carnavalesca" de Sampaio: “eu, por mim, queria isso e aquilo / um quilo mais daquilo, um grilo menos disso / é disso que eu preciso ou não é nada disso / eu quero é todo mundo nesse carnaval”. E ainda Copacabana, da carreira solo de Marcelo Camello, é uma marcha carnavalesca em sentido estrito.
Outro aspecto a ser apontado em Cara Estranho, e isso é bem oposto a qualquer coisa feita por Sérgio Sampaio, é em relação a ser “poeta maldito”. Parece que Sampaio não fez esforço nenhum para sê-lo. E Camello, embora seja feio que é um raio, e que parece filho de Serge Gainsbourg com a Janis Joplin (e com o talento misturado dos dois, para sua sorte), admite seu lado de pretenso bom moço atingindo, assim, pela ironia presente na essência do autorretrato, parecer maldito. Mas ser feio não é garantia de ser maldito. Porque feio ele é mesmo, nem precisa dizer. E quem liga pra isso? As mulheres, talvez; porque os homens acham isso tudo engraçado. Eu acho. Mas voltando ao assunto, nos versos: “tem tudo sempre às suas mãos / mas leva a cruz um pouco além / talhando feito um artesão /a imagem de um rapaz de bem”, há uma referência clara à criação artística, que é cultural e nesse sentido se opõe ao que é natural. Então, se o sujeito precisa talhar feito um artesão a imagem de um rapaz de bem, deve ser porque na verdade ele não é isso, mas faz de tudo para convencer a si e aos outros de que é. Assim, ele se aproxima, pela sua obra, ao que era Sérgio Sampaio, pela vida que se vê em sua obra.
Mudando um pouco de assunto, para falar de estilos ou gêneros musicais, outra coisa em comum entre Sérgio Sampaio e Marcelo Camello é a mistura que fazem de rock e de samba, mas não ao modo tradicional do samba-rock da escola de Jorge Ben a Seu Jorge. Tanto Sampaio quanto Camello, em algum momento, vão fazer um samba mais tradicional, assim como farão um rock tradicional, como se fossem coisas separadas. E diferente do samba-rock que eu falei, nota-se neles uma “contaminação” de um gênero no outro mas de maneira obtusa, que é para dizer pouco, porque não sei como dizer bem. Mas explico; em Samba A Dois, por exemplo, que é uma canção, que aqui se entenda sem a maquiagem dos instrumentos, cuja composição é um samba tradicional, é tocado na versão dos Los Hermanos com guitarra meio distorcida, baixo e bateria, o que faz com que não se configure como um samba tradicional, que deveria ser tocada com violão, cavaquinho, pandeiro, etc.
De forma mais ou menos similar, Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua, que foi hit num carnaval, também não é rigorosamente um samba, menos ainda que Até Outro Dia, dele mesmo, gravada pelo sambista João Nogueira praticamente sem alteração. Até Outro Dia, na gravação do próprio Sampaio tem os bordões de um choro, cujas frases melódicas foram mais ou menos adaptadas para bandolim, metais e piano na versão de Nogueira. Mas é um samba, indiscutivelmente. Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua, muito pelo contrário, tem na introdução um solo de guitarra, além de um solo de saxofone em escala cigana a la Mutantes ou algo assim, fazendo aquela linha hippie evolutivo, ou progressivo alternativo. São, enfim, os ecos dos malditos nos seus autorretratos...

Links para as letras:

Velho Bandido:
Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua:
Até Outro Dia:

Cara Estranho:
Samba A dois:
Todo Carnaval Tem Seu Fim:


Até a próxima!

Luis Felipe

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